Diário de Expedição
<texto digitado com formatação padrão de transcrição
de gravações>
Tenho
os pés envoltos em névoa e a sensação de que são muito mais próximos de meus
olhos do que de fato são. Olho [adiante] e não vejo senão uma cor branca
e pura à [minha] frente. Estico os braços e procuro olhar para as costas
das mãos, espalmadas no ar, mas desaparecidas ao mergulharem no espaço branco. [Mexo-as],
girando os punhos [no] eixo dos braços rijos e enfim vislumbro o vulto
dos dedos gorduchos [que] tinha aos dez [anos] de idade.
Ensaio
[um] passo inseguro e pouso a planta do pé sobre uma [superfície]
macia. [Vai o] pé esquerdo no encalço do direito, um tanto afobado,
outro [tanto] estimulado pelo sucesso da primeira [tentativa. Mas] piso
em falso e sinto pender todo o corpo para a esquerda. Abandona-me completamente
a sensação de peso. Estou [solto] no ar, escorregando pela cor leitosa
que me envolve. A aventura injeta energia e entusiasmo [em meu] corpo,
mas meu coração parece paralisado, à espreita dos perigos que prevê [minha]
mente.
Aos
poucos [sinto-me] desacelerar e o movimento vai sendo suavemente
reduzido, enquanto mãos invisíveis e macias [seguram-me e] tornam a
soltar para que mais adiante outros dedos, igualmente invisíveis e ternos,
enrosquem-se em meus braços, pernas e ombros e tornem a soltar, doce e
repetidamente [até que] a queda cesse por completo. [Permaneço]
parado, a respiração [ofegante] escapando pelos lábios entreabertos,
olhos arregalados, procurando divisar algo reconhecível na paisagem que se
mantém uniformemente branca.
Parece-me
uma eternidade aquele instante! Tenho os dedos cravados na superfície macia
como se esperasse, a qualquer momento, ser arrancado a força [dali por
alguma] desconhecida e terrível criatura. Uma massa cinzenta começa a se
desenhar à minha frente e aproxima-se com rapidez. Aos poucos, ganha tons mais
densos e vejo desenharem-se na massa oval as cavidades dos olhos e, um pouco
abaixo, uma mancha que muda constantemente de forma. Relaxo as mãos e solto os
dedos das reentrâncias que criei na superfície [em que me] apoio. A
criatura já [se aproximou] tanto do meu rosto que reconheço o nariz
longilíneo e a simpática careca de meu avô. Ele fala alguma coisa que não
compreendo. Talvez [pergunte-me] se estou bem. Ao perceber que cheguei
até ali sem nenhum arranhão e ler em meu rosto a mais pura expressão do
espanto, ele se ri e estende-me os braços. Sinto [minhas mãos] se aquecerem
entre as dele enquanto suspende meu corpo e me coloca de pé. Caminhamos lado [a
lado] longas horas. A partir de então, não sinto medo.*
*nota
das organizadoras: este relato foi transcrito a partir de uma fita extremamente
danificada (provavelmente pela exposição a uma situação de umidade extrema),
que se encontrava na caixa que Nano nos confiou. Foi preciso escutá-la muitas
vezes para que se pudesse determinar seu conteúdo e compreender a que período
se reportava. Durante quase toda a gravação, há apenas pequenos trechos de
fala, frases soltas que restaram de relatos parcialmente apagados e palavras
praticamente inaudíveis. Através desses indícios, pode-se inferir que tratam-se
de anotações de voz feitas por Nicodamus em um período anterior à descoberta da
nuvem. As palavras entre colchetes correspondem a falhas no áudio e foram
adicionadas para dar coesão e sentido ao texto.
Caderno de Apontamentos Iniciais
<para este trecho que traz as
anotações do caderno, serão usadas as imagens dos relatos escritos a mão – indicações
a parte serão feitas nos elementos que foram agregados pelos exploradores, como
bilhetes de Valentina e a passagem de balão; papéis indicados como
"encartados" foram encontrados soltos nas caixas, mas, pelo seu
estado, acredita-se que teriam sido colocados entre as páginas do caderno, de
onde teriam caído mais tarde, durante os acontecimentos conturbados do final da
viagem>
Terça-feira,
07 de abril
É
com o coração renovado que hoje me debruço sobre este velho caderno.
Ao
final de cada linha, interrompo-me e fito o céu, como quem perscruta o destino.
Sinto-me já rodeado de azul, enquanto meus olhos estreitados pela luz testemunham
as longínquas dunas de algodão movimentando brancuras.
Nesta
contemplação, conduz-me um sonho. Depois de tantas pesquisas, parece-me que
enfim descobri o lugar ideal para minha próxima expedição: a nuvem de Clareada.
Nunca estive lá e, durante anos, não a considerei senão sob a luz da fantasia
presente nas histórias que me contava meu avô. Mas revirando sua biblioteca
esta manhã, confirmei a existência de tal paragem, ao consultar uma antiga
enciclopédia sobre lugares curiosos, segundo a qual chega-se lá com facilidade
tomando-se um balão em um dia de tempo firme, como o de hoje.
É
preciso, no entanto, atualizar as informações que traz o volume por meio de
novas pesquisas.
<cópia do
desenho da nuvem, encontrado na enciclopédia, colada no caderno>
Segunda-feira, 27 de
abril
Enfim consegui uma resposta afirmativa da estação meteorológica. Minhas
tentativas de agendar uma visita, a fim de, com a ajuda de um profissional da
estação, traçar um plano de pesquisa sobre nuvens visitáveis, vinham sendo
negadas diariamente pelo supervisor atual. Hoje, estando ele ausente por motivo
que desconheço, aconteceu de atender o telefone o antigo supervisor da estação,
que embora aposentado há muitos anos, frequenta o espaço assiduamente a fim de
realizar suas pesquisas pessoais. Esse senhor apresentou-se-me como "o
infatigável Eliseu Virga" e, ao ouvir-me contar sobre meu interesse por
tais formações, mostrou-se extremamente solícito em receber-me. Irei até lá
amanhã mesmo.
Terça-feira, 28 de abril
Esta manhã, recebeu-me efusivamente na estação o senhor Virga. Apertou-me
calorosamente as mãos, justificando a ausência do supervisor, que se encontra
de férias nesta semana, e conduziu-me de pronto aos arquivos mais antigos.
Entrou pelo corredor de mapas e dirigiu-se resolutamente até suas últimas
mapotecas, onde já a escada se encontrava posicionada. Subiu com surpreendente
agilidade até uma das gavetas mais altas e sacou uma grande pasta encapada com
papel marmorizado, identificada com uma etiqueta onde se lia "SUBLIMACAO-ISOEK14KE19081926".
Desceu cuidadosamente até o ponto em que eu pude alcançá-la e, vendo-se com as
duas mãos livres, continuou a descida ainda mais rapidamente do que subira.
Levou-me então a uma grande mesa, onde, metodicamente, abriu a pasta, procurou
com as pontas dos dedos entre os papéis e deslizou três deles para a superfície
de fórmica. Abriu-os, atento à resistência das dobras, evitando amassar as
fibras intactas e, enquanto se expandiam sobre o tampo, revelou silenciosamente
uma combinação de manchas imprecisas, linhas demarcando formas irregulares que
se expandiam, letras, números e setas.
Nunca antes havia eu colocado os olhos sobre semelhante tipo de carta e não
pude deixar de demonstrar a confusão mental que tomava conta de minha percepção.
Virga explicou-me que ali estavam indicadas as nuvens, pressões atmosféricas e
ventos. Ao contrário das cartas de vento a que estamos habituados que, tendo o
foco voltado para os continentes não têm validade senão por algumas horas, dado
que os ventos logo abandonam suas posições geográficas, estas voltam-se às
nuvens e à movimentação do vento na troposfera, que tomam como referência,
podendo assim ser consultadas durante anos. Faziam parte de um antigo programa
da estação que ele mesmo criou quando era supervisor, a fim de rastrear as
nuvens e, através delas, o desenho do movimento constante dos ventos.
Enquanto o programa teve espaço na estação, Virga pôde dispor de todo o
equipamento necessário para se aprofundar nas pesquisas. Conseguiu, com isso,
enviar alguns balões-sonda para explorar a troposfera, colhendo dados como a
pressão atmosférica, a velocidade do vento e imagens do céu. As fotos
capturadas, por vezes, revelavam corpos curiosos entre as nuvens, delineados
por contornos rígidos, que muito se assemelhavam a torres de igrejas e topos de
telhados. Procurando compreender do que se tratavam esses corpos, chegou a
interceptar sinais de rádio de centenas de aeróstatos, colhendo impressões e
informações sobre suas rotas. Alguns deles dirigiam-se a localidades de
espantosa altitude que revelavam-se pontos desconhecidos (e mesmo impossíveis!)
na superfície terrestre. Frequentemente esses balões ou dirigíveis desapareciam
durante dias entre as nuvens e depois tornavam a aparecer como se tivessem ficado
por todo esse tempo parados no mesmo ponto, de onde então retornavam ao solo.
Os nomes mais frequentes dos destinos sinalizados por eles foram listados e
observados com insistência, podendo enfim ser relacionados a pontos que nas
cartas de movimentação eram fixos (ou seja, que embora se movimentassem em
relação ao solo, mantinham-se fixos em relação aos ventos). Em suas análises,
Virga notou que esses pontos caíam sempre sobre as mesmas nuvens e passou a
incluí-las nos mapas com os nomes indicados nas rotas.
Luminosa, Nevadinha, Plumbelina eram algumas das denominações delas. O ponto
"Clareada" começava a ser estudado, quando o obrigaram a abandonar o
programa, que, depois de alguns anos, foi considerado supérfluo.
Enquanto contava-me o desencadeamento desses fatos, ele foi juntando os três
mapas sobre a mesa, de forma que os cantos formavam o desenho de uma nuvem
mediana, em cujas bordas estavam indicados pontos que levavam o nome
"Clareada". Faltava o quarto canto, que ele não pudera encontrar em
parte alguma, mas que não impedia o reconhecimento da nuvem como uma unidade no
centro daqueles pontos.
Virga chegou a compor uma lista dos condutores de aeróstatos que se dirigiam a
esses pontos, a fim de colher deles depoimentos que esclarecessem os motivos da
peculiaridade de suas rotas e fornecessem pistas sobre as imagens que as sondas
haviam colhido. No entanto, o programa fora encerrado antes que ele pudesse
entrar em contato, e nada mais se descobriu acerca da questão.
Este incansável pesquisador revelou-me acreditar que o material forneça
indícios de que há, nas nuvens, mais do que estamos habituados a acreditar.
Contou-me que seu pai costumava dizer que "em tempos que nem mesmo as
nuvens sabemos visitar, tudo está perdido". Ele havia encarado essa frase
como uma metáfora, até dar com aquelas fotografias do interior das nuvens.
Ainda assim, o golpe que recebeu quando não pôde continuar com a pesquisa fora
tão violento que ele acabara endereçando seus interesses a outras
investigações, a fim de poupar seu coração de cientista. Parece, no entanto,
que nossa conversa veio reanimar suas esperanças: entregou-me uma cópia dos
mapas, outra da lista de condutores de aeróstatos e colocou-se à disposição
para ajudar no que for preciso com minha pesquisa. Sinto que encontrei um fiel
parceiro nesta empresa.
<vêm encartados: um postal da estação, um cópia do mapa do céu e das
nuvens próximas a Clareada (papel grande dobrado), e a lista de baloeiros (caligrafia de Virga,
papel surrado)>
Quinta-feira,
17 de maio
Permanecem infrutíferas as buscas pelos baloeiros. Já percorri quase toda a
lista do senhor Virga, e algo muito curioso se dá: a grande maioria deles não
têm identidade registrada em parte alguma! Que significará isto? Serão
codinomes, apelidos?
Dos poucos cujo registro pude encontrar, muitos já faleceram, outros, não
consegui contatar.
Minha esperança vai minguando como a quantidade de nomes que ainda não foram
totalmente descartados da lista..
Sexta-feira,
05 de junho
Tenho frequentado, diariamente, a estação de meteorologia e, enfim, começo a
conseguir mais informações sobre Clareada. Pelas análises das informações que
já tinha e de novos dados colhidos nos balões-sonda em operação, consegui
traçar com o Sr. Virga a curva de previsão do comportamento da nuvem. Pudemos
determinar, embora ainda sem grande precisão de datas, as fases de
desenvolvimento da formação que ainda são esperadas e a duração de cada uma
delas.
Porém, como as sondas de que dispomos são as mais elementares, não conseguimos
senão medir ventos e pressão, permanecendo sem novas imagens fotográficas para
analisar mais a fundo e determinar o que se pode esperar encontrar no interior
da nuvem.
Quarta-feira,
17 de junho
Vejo
afinal recompensados meus esforços de esmiuçar a lista de baloeiros. Já ia
quase dando por perdida a causa quando, na décima terceira vez que a repassava,
consegui contatar um deles. É um entre os poucos cujo nome pude encontrar em
uma antiga lista telefônica, mas, nas tentativas anteriores, seu telefone
chamava sem jamais ser atendido, motivo pelo qual eu já calculava jamais ter
pistas sobre ele. Seguia então percorrendo os números em minha lista, um tanto
desencorajado entre as respostas que obtinha: “mudou-se e não tenho contato”,
“vendeu-me esta linha há décadas e nunca mais voltamos a nos falar”, “aqui não
tem ninguém com esse nome”, “esse número de telefone não existe”, “infelizmente
veio a falecer”... Hoje, porém, na peregrinação do indicador sobre os
algarismos de 1 a 9, tive a sorte de encontrar o senhor Alberto em casa.
Trata-se de um senhor em idade avançada, mas que não pode desfazer-se de sua
ocupação de viajar pelos céus — por isso me era tão difícil obter resposta às
chamadas telefônicas. Para minha grande satisfação, concordou em receber-me na
segunda-feira próxima, quando estará de folga.
Segunda-feira,
21 de junho
Quão
frutífero o encontro que tive hoje com o senhor Alberto! Mal pude acreditar
quando ele finalmente confirmou minhas suspeitas sobre a existência de nuvens
visitáveis!
Começou
a conversa um pouco calado, valendo-se do silêncio que abriga os que
desconfiam. Perdeu a mulher há muito tempo, logo que os filhos cresceram e
empreenderam caminhos próprios. Desde então, passou a viver sozinho, não lhe
restando senão a companhia dos viajantes que subiam ao cesto de seu balão com
destino às nuvens. Mesmo estes, no entanto, foram rareando rapidamente. Havia
já se iniciado um processo de aceleração da vida prática e só aos mais velhos
restava tempo para realizar as viagens que o senhor Alberto oferecia. Esses
passageiros, aos poucos, se cansaram, adoeceram, despediram-se para sempre. Os
mais jovens, atentos demais aos afazeres cada vez mais numerosos do dia a dia,
distraíram-se e esqueceram-se do Reino da Sublimação pouco a pouco. Em menos de
uma década, já não encontrava o senhor Alberto quem lhe desse crédito quando
falava sobre as cidades das nuvens. Primeiro foi considerado filósofo, depois
poeta e, por fim, acabou no isolamento dos que perderam a razão. Restaram-lhe
como companheiros a velha casa, as velhas xícaras, o quieto gato branco, o
balão. “A vida do baloeiro é fazer-se leve” – Alberto infla o pano colorido
amarrado ao cesto e vai sozinho ver o horizonte muito abaixo da linha do nariz.
Percorre as nuvens recolhendo e deixando passageiros que leva de uma a outra.
Volta ao Chão para cuidar do gato, que apegou-se à casa e não consente em subir
no cesto. Fatigado das pessoas do Chão e de seu ceticismo, que classifica como
absurdas (e mesmo ridículas) essas viagens, o baloeiro fala pouco — ou nada — sobre
elas. Tomou-me de início por mais um curioso que vem lhe provocar a memória a
fim de constatar sua insanidade. Mas ao ouvir-me falar de Virga e de meu avô e
tomar nas mãos as cartas das nuvens que eu havia mencionado ao telefone, foi se
permitindo acreditar que poderia ser franco.
“É
preciso coragem para empreender essas viagens, filho. Faz-se o que não se faz —
o que sempre dizem que não se deve fazer: lança-se o balão às térmicas. As
primeiras vezes em que a gente entra no redemoinho são verdadeiramente
assustadoras. Mas se a gente mantém a calma, no final da subida, encontra um
sem fim de pequenos paraísos para visitar!” E já aí tinha se decidido a contar
todas as suas aventuras e falava à larga! Quando encontrei uma pausa,
perguntei-lhe sobre Clareada, e ele confirmou em sua fala o que apontavam os
indícios que tínhamos: a nuvem existe! Visitou-a poucas vezes, mas conhece
alguma coisa. Falou-me dos lagos, florestas e de sua notável topografia. Diz
que, como acontece nas outras nuvens, suas montanhas movem-se constantemente,
de acordo com o vento e a umidade, mas que ali o fazem com exuberância, criando
sempre grandes cadeias de beleza estonteante — muito perigosas de se visitar,
no entanto.
Já
entrada a noite, despedi-me dele agradecido. Na estante junto à porta de saída,
ele encontrou, em sua pequena biblioteca, quase toda composta por dicionários
de bolso, um que traz os verbetes de Clareada e mo deu como presente. Aceitei
de pronto e com exaltada alegria o volume sem capa, composto por páginas amarelas
e quebradiças e perfumado pelo tempo.
Amanhã,
no primeiro horário, levarei as novidades à estação. Virga ficará exultante!
<foto do
gato de Alberto encartada (espécie curiosa de gato, poderia ter vindo de uma
nuvem); desenho técnico do balão.>
Segunda-feira,
03 de agosto
Venho
estudando com afinco o dialeto clareado, fazendo uso do dicionário com que me
presenteou Alberto. Ao que parece, as palavras são praticamente as mesmas que
falamos no Chão, mas usando-se uma construção de difícil entendimento. Há, no
entanto, uma série que palavras que ali existem e aqui não, nascidas do
cotidiano em lugar tão diverso. Alguns exemplos:
nanco
= pequeno elevado de nuvem que as pessoas usam para se sentar
nuveno
= extensão de nuvem (corresponde ao que no Chão chamamos "terreno")
sublimatório
= o correspondente ao que em terra denominamos "território"
subnuvâneo
= camadas mais internas da nuvem, de difícil acesso por sua alta concentração
de núcleos de condensação, que tornam os caminhos mais densos e difíceis de
transpor
trégua
= pequena clareira de nuvem que surge, por vezes, em uma trilha fechada e onde
podem caber de duas a três pessoas
alumínio aluminado = trata-se de um material realmente incrível e completamente
diferente do seu "primo", alumínio comum, que aqui no Chão
encontramos principalmente em panelas e latinhas de refrigerante. Em contato
com água ou em ambientes úmidos, alumínio aluminado cria uma camada de
luz em volta de si. Uma luz tão densa que é mais resistente que um bloco de
pedra e muito mais leve do que a asa de um passarinho. Com ele são feitas, por
anões muito habilidosos que possuem o segredo de sua manipulação, as botas
perfeitas para um habitante das nuvens e para quem pratica corrida sobre as
águas (obviamente precisarei providenciar um par para mim quando lá estiver).
Também
encontrei algumas saudações curiosas que possuem: "Tarde Azul!",
"Sol oculto!", "Ventania alegre!", "Sol ao
alto!", "Vento breve!", "Brisa Suave!", “Sol abaixo!”,
entre tantas outras. Ao que parece, não se contentam em dizer sempre e apenas
"Bom dia", "Boa tarde" ou "Até logo", diante da
notável variedade climática circundante...
<dupla só com imagem do céu, foto feita
por Nicodamus durante a viagem de balão>
Quarta-feira,
09 de setembro
Pelo
vapor que me envolve!! Estou sem palavras! É a primeira vez que piso nesta
superfície instável! Como é bela e luminosa! É pena que só possa ficar por
poucos dias nesta minha primeira visita. Farei um breve reconhecimento do sublimatório
e logo devo retornar para dar continuidade aos estudos e preparativos
necessários para uma estadia mais longa. Já penso na despedida com um vazio.
Quinta-feira,
10 de setembro
Ontem,
durante nosso suspenso caminho até Clareada, Alberto contou-me um pouco sobre
como se fazem os deslocamentos na nuvem – assunto que me preocupava um bom
tanto, uma vez que pretendo fazer um mapeamento geral do sublimatório
nesta primeira estadia e, para tal, preciso de agilidade.
Segundo
ele, há diversas modalidades de deslocamentos. Pode-se tranquilamente, por
exemplo, caminhar, tendo debaixo dos pés a mais macia superfície, o que permite
que se realizem longas caminhadas sem sentir o cansaço que habitualmente nos
acomete no Chão. Soma-se a esta vantagem a de não serem tão herméticos os
caminhos: há diversos atalhos para aqueles que conhecem bem as formações dos
núcleos de condensação locais. É possível lançar-se em um vão aqui e chegar
ali, em suave queda livre, ralentada por alguns fiapos de nuvem, economizando até
50 minutos em relação a uma caminhada regular.
Há
também os balonetes, pequenos balões
que flutuam devido a um leve aquecimento do ar e são impulsionados pelo vento.
Podem levar de uma a quatro pessoas a lugares próximos sem oferecer riscos.
Geralmente são confeccionados pelas famílias, que escolhem entre os retalhos
que sobram das confecções de suas roupas pedaços coloridos o bastante para
chamar a atenção de outros baloeiros com que porventura se cruzem. Não se
tratam de dirigíveis, entretanto os clareados são muito hábeis em alterar suas
rotas, com ajuda de contrapesos e uma pequena vela acoplada ao cesto ou à
mochila.
Outra
opção, que só se torna viável em dias de vento forte, é a pipa. Requer,
todavia, bastante prática e espírito aventureiro, pois o tripulante pode ser
lançado, descontroladamente, por alguma corrente de vento. Outro inconveniente
é que muitas vezes, se o vento é forte demais, não há outro meio de apear senão
abandonando esse veículo ao sabor da corrente (fato que pode explicar as tantas
pipas sem dono que vão parar ao Chão sem que se saibam de onde vieram) e
fica-se desprovido de uma maneira mais ágil para se deslocar no caminho de
volta.
Quando
aportamos e já o balão se encontrava seguramente atracado ao cais, Alberto fez
questão de levar-me à casa de Tico-Sanhaço, espécie de guia de Clareada, que
conhece bem todos os caminhos e atalhos. Recebeu-me ele calorosamente,
oferecendo pouso nessa primeira estadia e companhia nas expedições. Em troca,
ajudarei com alguns reparos na casa e no balão da família. Este sofreu algumas
avarias em seu último passeio, quando ensinava os dois filhos a pilotar – são
ainda jovens e acabam de entrar na idade de começar a aprender como se guia um balonete. A casa está em perfeito
estado, mas como toda construção feita na nuvem, é delicada e exige pequenos
cuidados diários. As paredes e telhados são aqui tecidos com folhas, palha,
pequenos galhos, palmas secas e fios de nuvem (estrutura tão fina que chega a
ser transparente), fazendo-se necessário, por vezes, refazer a trama em alguns
trechos; as janelas são confeccionadas com delicadas folhas de gelo, que podem
derreter em dias mais quentes ou trincar nos mais frios, sendo preciso
substituí-las.
Na
falta do balonete, hoje começaremos
as expedições caminhando. Tico-Sanhaço diz que já irá me ensinar alguns
atalhos.
<anotações
técnicas: balonete, pipa, materiais e construção da casa; desenho: casa de Tico-Sanhaço>
<foto:
Nicodamus e Tico-Sanhaço>
Sábado,
12 de setembro
Hoje
soube de um aspecto extremamente doce da nuvem. Estando aqui já há alguns dias,
reparei que a cada amanhecer cobre-se o sublimatório de pequenas flores
esparsas de cores diferentes, que vão se abrindo até a metade do dia e, num
movimento contínuo imperceptível, fecham-se sobre si mesmas até o último
instante da noite, quando assemelham-se a pequenas cápsulas inacessíveis. No
dia de minha chegada, eram lilases, já no dia seguinte, eram vermelhas e hoje
estendem uma cor amarela pelos caminhos. Contou-me D. Clara em Neve, uma
senhora que acabo de conhecer em casa de Ariadne Algodoeira, onde ia buscar
linha e tecidos para a reforma do balonete
dos Sanhaços, que a cada dia essa cor se modifica segundo um ciclo que se
repete, e cada uma dessas espécies de flores recebe um nome diferente – nome
esse com que presenteiam os dias em que aparecem. As flores de hoje chamam-se "vitális",
o dia de hoje na nuvem não é, portanto, chamado de sábado, mas de "vitális".
E assim, o que no Chão chamamos de "semana", na nuvem chama-se "lumina"
e cada lumina é composta por sete dias ou refrãs, chamados "elíris",
"semísia", "undúnia", "alúmia",
"vincúlia", "gerísia" e "vitális".
Também
os meses (ou termis) têm nomes diferentes dos nossos e são 13, compostos
cada um por 28 dias, com exceção do último do ano, que tem 29. Pedi à minha
nova amiga que enumerasse os meses – tarefa que ela começou com dedicação, mas
que já no terceiro nome enveredou por uma rede de histórias que lhe vieram à
memória e afastaram-nos dos meses seguintes.
Consegui
dela, no entanto, outra informação utilíssima: uma indicação de onde arranjar
botas de alumínio aluminado, que tanto têm me feito falta em saídas
noturnas. D. Clara em Neve não as utiliza, pois prefere o modelo antigo de
galochas com lampião, mas conhece desde pequeno o rapaz que popularizou o novo
modelo, a partir do amistoso conhecimento que travou com os anões que as
produzem. Irei a procura do local se não nesta tarde, então na semísia,
pois amanhã, elíris, é dia de descanso na nuvem.
<anotação técnica: flores da lumina>
Segunda-feira
(ou semísia), 14 de setembro
Acabo
de sair da casa de Solano Lume, que possui botas de alumínio aluminado
para troca e com quem tive uma agradável conversa. Aparentemente (ainda tenho
dificuldade para acompanhar a fala solta dos clareados), tendo se perdido em um
atalho ao cair da noite, quando ainda estava na primeira infância, Solano
alcançou a mina onde trabalhavam numerosos dos anões, que detêm o segredo da
manipulação do curioso material metálico luminoso. Apesar de reservados, ao
encontrarem indefeso o menino, prontamente se dispuseram a ajudá-lo a encontrar
o caminho de casa. Como ele não fizesse senão balbuciar palavras
incompreensíveis e rir encantadoramente nas longas horas em que estiveram
juntos, os homenzinhos afeiçoaram-se a Solano. Não só não descansaram enquanto
não o deixaram sob os cuidados de sua mãe, como também confeccionaram-lhe
pequenas botinhas luminosas, para evitar que ele se perdesse novamente. Ora, em
menos de um ano seus pezinhos já haviam crescido e, lembrando-se do caminho
para as minas, o menino foi pedir que lhe dessem novas botas, que lhe não fizessem
bolhas nos dedos. Levou em agradecimento seu brinquedo favorito: um boneco que
lhe tinha feito sua avó e que possuía uma longa barba – muito parecido com o
mais velho dos anões. Eles, divertidos, logo reconheceram no boneco o estimado
companheiro de trabalho e aceitaram a troca. Começava assim uma terna amizade.
Solano retornava a cada ano com um presente (um balonetezinho de inflar com a boca, um bonequinho de madeira atado
a uma pipa em miniatura, um caderno novinho costurado à mão, etc.) e saía da
mina com botas novas. As botas faziam vista aos vizinhos e amigos, que passaram
a instar que ele lhes arranjasse pares como aqueles. Os anões que, a pedido do
menino, não mediam esforços, passaram a produzir um sem número de botas e, até
hoje, trocam com ele os pares encomendados por pequenos objetos bem
confeccionados (preferencialmente à mão). Bons bocados de comida
recém-preparada também agradam muito.
Encontrei,
entre as botas que ele mantém, uma bastante apropriada para meus pés e dei em
troca uma brochura que encadernei manualmente, usando um dos melhores papéis
que encontro no Chão. Os habitantes da nuvem apreciam muito nossos papéis, por
serem de um modo geral mais grossos e de textura diversa dos produzidos aqui.
Antes
de retornar à casa de meu anfitrião, ainda consegui do simpático rapaz a lista
completa dos meses da nuvem:
1.
Búlis
2.
Cális
3.
Plácis
4.
Bris
5.
Lufa
6.
Molúria
7.
Glacis
8.
Ababalha
9.
Promis
10.
Intermítis
11.
Brânis
12.
Calmaris
13.
Nacarado
<pequeno
calendário de bolso da nuvem, provavelmente um presente de Solano,
encartado>
Domingo,
20 de setembro
Suspeito
que minha presença na nuvem tem despertado a curiosidade dos habitantes. Todas
as noites, recebemos em casa de Tico-Sanhaço visitas muito bem dispostas a conversar.
Não raro, são palestras gostosas, pois a fala dos clareados é muito diferente
da nossa. As palavras parecem sair de suas bocas como bolhas de sabão. Suas
frases são construídas por meio de um raciocínio inteiramente diferente (embora
suficientemente compreensível), em que as palavras não têm ligações tão
herméticas como as nossas. Ao contrário, tem-se a impressão de que irão se
desprender umas das outras a qualquer momento. Em vez de dizer, por exemplo,
"Ontem tivemos um belíssimo pôr-do-sol", dizem "Veio do poente
passou aqui laranja azul rosa... fogo vira água no céu... foi, não vem
mais...". Já o tinha estudado em terra, mas, no convívio diário, esse
dialeto se revela mais e mais inspirador. E não se nota apenas na fala a
diferença dos clareados em relação a nós, que somos originais do Chão: são mais
cordiais, sorriem com frequência, movimentam-se com mais leveza e alguma
lentidão. Têm a pele claríssima; os cabelos quase sempre ondulados e tão leves
que esvoaçam o tempo todo; os olhos, não importando sua cor, parecem sempre
muito transparentes e cheios de luz; têm a boca e as maçãs do rosto
avermelhadas pelo frio; pés e mãos pequenos, com dedinhos esguios e hábeis, que
tocam as coisas mais delicadas sem danificá-las.
É
certo que em sua companhia meus dias aqui hão de ser assaz agradáveis!
Além
disso, trazem-me sempre informações muito úteis à pesquisa, contando sobre os
costumes locais e compartilhando memórias. Entre elas, há uma que muito me
interessa: as histórias dos antepassados que viveram na primeira vila de
Clareada, que acabou por prosperar e crescer, tornando-se uma grande metrópole,
mas que, a certo ponto, precisou ser abandonada por razões que ainda não pude
compreender. Parece-me, no entanto, entender que ainda se podem visitar as
ruínas da Vila Antiga, que dizem ser belíssimas. Pedi a Tico-Sanhaço que me
levasse até lá, o que prometeu-me ele fazer quando eu cá estiver em estadia
mais demorada. Aparentemente a trilha para as ruínas é muito difícil e será
melhor que eu a faça quando estiver mais habituado ao modo de caminhar neste
imprevisível nuveno.
<duplas com as
fotos do pôr-do-sol, capturadas por Nicodamus durante a visita>
Terça-feira,
22 de setembro
Nestes
dias em que tenho percorrido Clareada, tive a oportunidade de presenciar o pôr-do-sol
nos mais variados aspectos que o sublimatório proporciona. Vê-lo a
partir da nuvem é algo indescritível!
Nas
clareiras, o encontro da luz solar com as gotículas da nuvem resulta em grandes
projeções ondulantes de cor, assemelhando-se, grosso modo, a uma aurora polar.
Já
aqueles que estão embrenhados nas regiões mais centrais de Clareada sentem-se
mergulhados na cor predominante de cada poente (usualmente varia do amarelo
cálido ao encarnado vívido, passando por tons violáceos), que banha as paredes de
condensação, projetando-se de fora para dentro da nuvem e criando a ilusão de
que emana dos nancos.
Nas
periferias, avistam-se mais claramente as ondulações de cor, que ali tornam-se
mais intensas. Os que se arriscam nessas porções mais externas (e instáveis) do
sublimatório veem somar-se a essa visão a do próprio sol, enquanto mergulha em
terras ou águas distantes. Quando se sobrevoa a terra, veem-se os rios, que,
delicadamente, se acendem e apagam um a um. Mas se tem-se a sorte de estar a
nuvem sobre o mar, a intensidade da luz é multiplicada ao infinito! Pode-se até
mesmo perder a referência do que está em cima e do que está embaixo.
Amanhã,
no entanto, torno a ver esse espetáculo da perspectiva do Chão: é tempo de
voltar e dar início aos preparativos necessários para a mudança da estação de
pesquisa para Clareada. Parto logo cedo, no primeiro balão.
<mapa da
nuvem com os lugares listados nessa visita: percebe-se claramente no desenho,
pelas cores diferentes e caligrafia levemente alterada, que as anotações dos
lugares foram feitas em momentos diferentes, provavelmente à medida em que o
explorador ia conhecendo cada local>
Quarta-feira,
23 de setembro
Que
grata surpresa tive esta manhã! Contava voltar ao Chão com um dos baloeiros
locais, mas quando cheguei ao cais, era Alberto quem me aguardava. Sabendo que
era o dia de minha partida, ele trocara seu horário para encontrar-me, o que
muito me alegrou. Estávamos os dois saudosos de nossas conversas!
Chegando
ao Chão, não fui no entanto direto para casa. O baloeiro insistiu que aceitasse
um café, dizendo-me que precisava trocar uma ou duas palavrinhas. Enquanto
fervia a água, pediu-me que o acompanhasse pelo corredor que leva aos quartos.
Aproximou-se da segunda porta à direita e abriu-a vagarosamente. Descortinou-se
então diante de meus olhos imensa biblioteca forrada do chão ao teto com livros
que Alberto trouxe de suas incontáveis viagens ao Reino da Sublimação. Com um
movimento da mão convidou-me a entrar, guiando-me entre as estantes dispostas
labirinticamente, de forma a melhor aproveitar o pequeno espaço da sala, e
ofereceu-me uso livre do acervo. Estive lá por longas horas, fazendo uma lista
mental dos volumes, abrindo alguns, saboreando antecipadamente a trilha de
conhecimento que poderei percorrer. Não parti senão quando os olhos já me
pesavam em demasia, em decorrência da leitura e do cansaço provocado pelas
aventuras e surpresas deste dia. Apesar disso, estando já agora em casa e
confortável, não posso conciliar o sono – mal posso acreditar no material a que
acabo de ter acesso! Voltarei lá amanhã mesmo, acompanhado de Virga, a quem já
informei da boa nova.