Segunda-feira,
22 de março
Tenciono
ainda este ano mudar-me para a nuvem de Clareada. As pesquisas já se estendem
agora por quase um ano e reuni grande quantidade de material sobre o lugar,
entre pesquisas históricas, topográficas, antropológicas e meteorológicas. Após
algumas visitas curtas à nuvem, sinto-me, enfim, preparado para empreender a
viagem definitiva. É preciso agora preparar o material para a pesquisa de
campo. Prevejo uma infindável lista de materiais bastante específicos,
considerando o clima e as peculiaridades do lugar.
<depois
de diversas anotações nas bordas das páginas, em uma vã tentativa de chamar a
atenção de Nico, Valentina toma a ousadia de escrever uma entrada no diário do
irmão (este relato traz sua caligrafia)>
Terça-feira,
23 de março
Nicodamus
Bernaldo,
É
isso mesmo, eu estou aqui escrevendo em seu diário. Aposto que você está sem
respirar. Pois pode segurar a respiração mais um pouco porque escrevo tudo isso
com a sua caneta favorita. Não a de madeira, a amarela que você guarda trancada
na gaveta. Sim, sim, caro irmão. Não estou aqui para brincadeiras.
Antes que você venha esbaforir na minha janela, já deixo claro que essa foi a
última alternativa que encontrei. Meus bilhetes, batidas na porta e mensagens
subliminares não têm sido suficientes, não é mesmo? Quem sabe dessa forma você
finalmente me responde.
Nico,
você vive falando que não posso ir para Clareada por causa da minha pouca
idade. Mas isso é o que faz de mim a ajudante perfeita! Vou te trazer uma memória:
Picada do Bode. Pense o que teria acontecido com você se eu não estivesse lá
com minha toalhinha e sanduíches de tomate. Tenho 14 anos de pura agilidade
mental e ousadia, meu irmão! É o que todo explorador precisa.
Espero Sua rápIda resposta. EstaMos, entendidos?
Valentina
PS.
A história da caneta é mentira. Não sou tão maluca assim.
<volta a caligrafia de Nicodamus>
Sexta-feira,
26 de março
Desde
que me decidi a partir, Valentina não me tem dado paz, como se pode ver neste
mesmíssimo caderno, pelas suas manuscritas invasões. Quer por toda força
acompanhar-me na expedição. Mal consigo seguir com os preparativos
encontrando-a sempre em torno de mim pedindo e insistindo. Chegou até mesmo a
visitar Alberto, sozinha e sem convite, o que muito me preocupou. Mas disse-me
ele que ela foi muitíssimo agradável e falou apenas da grande admiração que tem
por mim, não pedindo em momento algum que ele a incluísse na subida à nuvem. É
melhor que seja assim. Não posso levá-la. É perigoso e não terei tempo para
cuidar dela.
Consegui,
no entanto, ao menos definir a lista de materiais de pesquisa de que
precisarei, alguns dos quais já possuo. Há pouco tempo para conseguir os que me
faltam.
.
Botas de alumínio aluminado – OK
.
Dez pequenos cadernos de saída a campo
.
Este diário para relatos gerais – OK
.
Óculos escuros com limpadores – OK
.
Indicador de vento com adaptador para ombreiras – (procurarei no armazém de
Luana Breve, em Clareada)
.
Lupa – OK
.
Binóculos – OK
.
Recipientes de formas e tamanhos variados para coleta de amostras
.
Câmera fotográfica e lentes especiais para distância, umidade, visão noturna –
pegar com Virga alguns dias antes da partida
.
Barraca pequena para expedições longas – OK
.
Cantil – trocarei no armazém (os da nuvem são mais leves)
.
“20 mil léguas submarinas” para trocar pelo cantil – OK
.
Roupas quentes e confortáveis – já separei algumas, mas a maioria devo obter em
Clareada (naturalmente as roupas que se encontram lá são mais adequadas às
necessidades locais)
.
Esfriadeiro (Luana deve me ajudar a encontrar um)
.
Bússola – OK
.
Mochila impermeável – OK
.
Caneta amarela – colocar na bagagem apenas alguns minutos antes de sair de casa
.
Pena para anotações – OK
.
Tinta para pena – levo um vidro, mas devo obter outros na nuvem (a tinta deles
é mais resistente à umidade)*
.
Aquarelas para anotações de campo
.
Canivete – OK
.
Cordames para fins imprevistos diversos – OK
.
Os livros que me deu Alberto – OK
.
Valentina – OK <caligrafia de
Valentina>
.
Aparelho que reúna funções diversas (fotografar, colher amostras, gravar
anotações de voz, etc.), permitindo agilidade nas pesquisas de campo – estou
trabalhando novamente no último invento (hei de lograr sucesso desta vez)
<desenhos
de alguns dos objetos acompanham a lista>
*nota
das organizadoras: de fato pôde-se notar nos originais uma diferença
substancial na qualidade gráfica das anotações, tanto no que diz respeito à cor
da tinta usada (inicialmente próxima do preto e posteriormente em tom
acastanhado) quanto com relação à precisão da linha (as primeiras anotações do
período após a mudança para a nuvem pareciam borradas, como se a tinta
estivesse diluída demais; após alguns dias, no entanto, a linha torna-se
precisa).
<bilhete colado
no diário – colagem provavelmente feita por Valentina, com a seguinte
observação acrescentada na página, com a caligrafia da exploradora:
"bilhete enviado por aviãozinho de papel arremessado contra o nariz de
Nico antes do café da manhã.">
Quinta-feira,
01 de abril
Nico,
Não
quero mais ir para Clareada. Você tem razão, sou como um pacote de ovos
quebrados. As pessoas percebem o desastre à grandes distâncias. Só vou te
atrapalhar.
Desconsidere
todas as bagagens que estão no chão da sala. Elas estão prontas só porque eu
quis ver se as minhas roupas cabiam dentro das malas da mamãe. Desconsidere
também que deixei minha mochila com o Alberto (e que ela está dentro do seu
balão). Fiz isso para checar se o peso dela era capaz de segurar o balão no
chão. Não é um preparativo para te acompanhar na viagem, de forma alguma.
Respeito sua opinião.
Considere,
por favor, que hoje é primeiro de abril. HÁ!
Vale
<desenho
da Valentina –
ela e Nico na nuvem>
Sexta-feira,
02 de abril
Recebi
hoje carta de D. Clara em Neve. Diz poder me hospedar enquanto estiver na
nuvem, pois possui uma cabana extra, que pertencia à sua mãe — encontra-se
vazia e é perfeita para uma pessoa. Já começou a prepará-la para minha estadia.
Que amável senhora! Foi de fato muita sorte tê-la conhecido logo em minha
primeira visita a Clareada.
<carta encartada no diário, dentro do
envelope, com os selos de Clareada>
Sexta-feira,
02 de julho
Enfim
concluí os aperfeiçoamentos de um aparelho em que há tempos vinha trabalhando:
o Binofotomultiscópio. Desde minhas primeiras viagens sentia falta de um
equipamento que reunisse em si as mais diversas funções e mantivesse minhas
mãos livres. Agora o tenho: o Binofotomultiscópio possui bússola,
binóculo, máquina fotográfica, filmadora, gravador, coletor de amostras e uma
série de outros aparatos, podendo todos eles serem acionados por comando de
voz. Tudo isso alimentado por um dínamo, o que me dará autonomia para
movimentar-me para locais distantes.
<desenho técnico
do Binofotomultiscópio>
<mais um bilhete colado na página,
provavelmente por Valentina, com a indicação: "bilhete passado por debaixo da porta do quarto de Nico">
Maninho,
Você
acha uma boa ideia levar esse trambolho? O Binofotomuitacoisa? Ele deve pesar
uns mil quilos, vai ser como equilibrar um mamute no pescoço. Fora que o estilo
dele é um pouco ultrapassado… Bom, os Bernaldos sempre foram excêntricos na
hora de se vestirem. Você está representando muito bem a nossa família!
Vou preparar uma bolsa com ervas e pomadas para o seu torcicolo. Olha como eu
sou prestativa!
Vale
Sexta-feira,
16 de setembro
Acredito
ter, enfim, tudo pronto para partir! Já comprei com Alberto a passagem para o
balão que sai no dia 10 próximo. Teremos também a companhia de alguns
habitantes da Sublimação que estão em visita à nossa cidade e retornam no mesmo
dia às suas nuvens.
Deixo
Virga em terra com a incumbência de acompanhar os movimentos da nuvem e
avisar-me da data exata do início da chuva assim que conseguir determiná-la.
Pedi, ainda, aos meus pais que vigiem Valentina. Suspeito que ela tentará
alguma coisa no dia marcado para a viagem.
<passagem
de balão encartada; foto do explorador chegando de balão (feita por D. Clara em
Neve, com uma dedicatória para o explorador no verso>