[Nicodamus]
Vincúlia, 22 de promis de 1081
Que
dia esplêndido é hoje! É início da primavera, as flores desanuviam-se nos
galhos e mirando para fora da nuvem, entrevê-se vez ou outra uma amostra de
celeste azul.
É
entretanto um dia algo triste, pois é tempo de despedidas: amanhã tem início a
temporada de chuvas que encerra a história desta nuvem.
Seus
habitantes já reuniram os poucos pertences que pretendem manter consigo, grande
parte deles já se despediu até mesmo de suas casas, outros apressam-se em rever
as pessoas queridas e há muito afastadas. Aqui e ali escuta-se o som de festas
e pequenos balões de luz sobem da neblina.
Pergunto-me
se amanhã ainda reinará esta alegria ou se a nuvem se decidirá por principiar
seu fim dramaticamente em uma tempestade cinza e violenta...
<novo desenho técnico de Tôca, feito
por Nicodamus>
Hoje
Pitoca alcançou estonteantes:
•
12 m de envergadura
•
5 m de altura
•
6 m de comprimento que agora contam com uma volumosa cauda
•
delicados penachos começam a nascer no topo de sua cabeça
•
produz um conhecido som que não me agrada nada!
[som
ao fundo]*
Cruá-cupá!
Cruá-cupá! Cruá-cupá! Cruá-cupá! Cruá-cupá! Cruá-cupá!
[voz
de Valentina ao fundo]
Nicoooo!
Vemaquiforaagoramesmovocêtemqueverissoaqui!!!!!
*diversas
vezes pôde-se identificar nas gravações sons registrados a uma certa distância
do Binofotomultiscópio.
Optamos por transcrevê-los somente quando contribuem para uma compreensão
melhor dos fatos relatados, como acontece no presente relato. (N.O.)
[voz
desconhecida]
Vento
breve amigos! [pausa – não identificamos na gravação resposta dos exploradores
a essa saudação. Pode se tratar tanto de uma falha técnica quanto do silêncio
causado pela surpresa desta visita inesperada] Membro sou da mais nova
geração da mais antiga família de Clareada. [nova pausa] Os meus viram a
nuvem se formar e crescer... Viram dias gloriosos no auge do desenvolvimento...
E, hoje, tenho a honra: vejo-a chegar ao momento mais importante de existência
sua. Últimas partículas formarão uno com solo terrestre. [pausa]
Longos
anos empreendi viagem pelo Reino da Sublimação no Cirrus, dirigível por mim
confeccionado. Era elíris, primeiro dia desta presente lumina,
quando vento, vento forte mudou planos: não podia conduzir o Cirrus onde
queria, caí na Corrente das Belezas, no justo ponto aonde vinha Clareada.
Entendi: hora do retorno, hora da despedida.
Primeira
providência visitar Clara Aerada, preclara senhora, pessoa de mais avançada
idade no sublimatório, a quem se deve pedir bênção. Contou-me visita dos irmãos
que vêm do Chão, trazendo Grão Lufo. “Viram ancião, é certo.” “Onde encontro?”
“Velha cabana de Clara Aluada.” Vim de uma vez. [nova pausa]
Soube:
vocês têm realizado pesquisas e registros a respeito desta nossa morada...
Considerando circunstâncias atuais, precisava vê-los. Imagino aqui... vocês têm
muitas perguntas a meu respeito. [pausa] Mas, agora... Falo primeiro de
mim: reconheçam neste que vos fala um amigo... Meu tataratataratataravô era um
morador do solo. Vocês, igual… Mas antepassados todos de nuvem. Após longos
anos de pesquisa, descobriu: Reino da Sublimação. Milhares de
pessoas moravam em nuvens. Visitando algumas delas compreendeu como
se formavam e dissipavam as cidades nelas construídas. Em acordo com o ciclonimbus
natural... Dia então conheceu aquela que seria minha tataratataratataravó.
Apaixonou amor profundo. Moradora de nuvem Nevada... Estava por chover, como
hoje nossa Clareada. Ouvindo rumores: o “início da formação de uma nuvem
promissora”, antepassado meu para lá se mudou... levou a amada... construiu
família... se estende por longas gerações. Falo justamente desta nuvem hoje por
nós morada. Embora apaixonado por tudo referente ao mundo novo que conhecia,
ele jamais esqueceu maravilhas e amor que tinha por terra sua nascida. Por
isso, nós – família Nevoeiro – recebemos, junto com educação
nimbus, educação terrestre. Peço apenas perdão por modo assim de expressar...
Estudei em teoria a fala do Chão. Pratiquei nunca com nativo. Vez é primeira. [pausa]
[Nicodamus]
Perdoe-me,
por favor. Permita-me apresentar… Antes… Um momen… [gravação interrompida]
<foto do visitante>
[Nicodamus
– gravação ruidosa, provavelmente feita sob ventos fortes]
Quando
Valentina entrou em casa como uma ventania gelada para me chamar, a fim de ver
a imensa criatura que apontava sobre nossas cabeças, do lado de fora da cabana,
eu não poderia imaginar quem era a grande figura que estava prestes a pousar
diante de nossa porta.
Era
um tipo muito curioso que chegou do alto, trazido pelas asas de uma grande ave,
muito semelhante a Tôca, embora um pouco mais robusta e de um azul profundo,
que atende pelo nome de Heitor. Estivemos um tempo perplexos, fitando-os
boquiabertos, sem compreender absolutamente quem eram, até que o homem desceu
do dorso da ave e se apresentou – o que, aliás, deixou-me ainda mais
estupefato, pois descobri tratar-se de alguém por quem há muito tempo eu
procurava. Por esta razão, acabei por gravar involuntariamente o princípio de
sua apresentação sem seu devido consentimento, pois encontrava-me paralisado
pela surpresa e não me lembrei prontamente de interromper o funcionamento do Binofotomultiscópio.
Chama-se
Nimbus von Nevoeiro e é precisamente o último Nevoeiro, aquele sobre quem
durante muito tempo procurei informações, não conseguindo senão a confirmação
de que não se podia encontrá-lo em parte alguma da nuvem. Agora está claro o
porquê: esteve fora de Clareada por muitos anos. Mais conhecido na nuvem por
Von Nimbus, tem a mesma graça no portar-se que outros clareados que conhecemos
e a mesma maciez no falar, mas parece esforçar-se por construir suas frases à
nossa maneira, o que faz com admirável habilidade. Mas o que realmente há de
curioso nele é que as características físicas comuns aos clareados parecem dez
vezes intensificadas. Tem os olhos tão claros que mesmo na íris se vê com
dificuldade um pálido azul – a própria pupila, não chega a ser preta,
mas de um azul levemente acinzentado e muito claro. E eles brilham mais do que
os olhos de qualquer ser que já encontramos! A pele não é apenas clara: por
vezes, pensamos enxergar através dele. Os fios de seu cabelo são finos e
levemente luminosos (como as teias de aranha quando as vemos contra a luz) e
entre seus cachos, que ondulam como o mar, voam pequenos insetinhos
cintilantes.
Convidamo-lo
a entrar e lhe oferecemos um chá. Ele então pediu-nos que lhe mostrássemos a
mensagem do ancião, o que ele chama de Grão Lufo. Sem poder conter minha
ansiedade, parei abruptamente de servir as xícaras e fui ao escritório
buscá-la. Há muito que esperava por esse momento: o instante em que este homem
de grande conhecimento colocaria os olhos sobre as inscrições e jogaria luz
sobre um mistério que se estende durante meses! Mas ao tomá-la nas mãos, não vi
a compreensão iluminar seu rosto. Ao contrário: parecia quase tão confuso
quanto eu! Explicou que aquela devia ser uma escrita mais antiga do que a
própria nuvem e que, por ser assim, não a conhecia de cabeça. Mas convidou-nos
a ir até sua casa, onde poderemos finalmente consultar sua vasta biblioteca.
Como a chuva é iminente e o tempo é curto, nos preparamos de imediato para sair.
Estamos
em pleno ar agora, eu e Valentina nas asas de Tôca, enquanto no dorso de
Heitor está Von Nimbus. Voamos com destino ao Solar da Névoa, residência
dos Nevoeiro desde a Grande Geada do ano 10 (assim é conhecido na nuvem um
evento naturimbus bastante violento, que aconteceu no ano de 610).
<foto: vidraça com padrões decorativos>
[Nicodamus
– em voz baixa]
Uma
doce luz lunar escorre pela janela colorindo de azul todo o pequeno aposento.
Recostado numa cadeira de braços macios, sinto-me contente por poder fazer este
registro com a fala – caso fossem necessários papel e pena, a chama quente da
vela apagaria os desenhos agora acesos no vitral pela luz externa. É preciso
apenas falar a meia voz, pois os outros dormem: ocupo, neste momento, um dos
quartos do Solar da Névoa, separado de Valentina e Von Nimbus apenas por finas
paredes.
<foto: padrões florais e
geométricos>
Embora
não seja uma casa muito grande, é a maior da nuvem. Assobradada, com grandes
janelas e pé direito admiravelmente alto, conduz pelo espaço aquele que entra,
valendo-se de padrões florais e geométricos, compostos pelo entrelaçamento de
fibras de diferentes cores que, sem ostentação, percorrem chão, paredes e
forros. O primeiro desenho sobre o qual se põe os pés, logo no hall de entrada,
é um relógio de sol extremamente engenhoso, que opera de maneira totalmente
diversa daqueles encontrados no Chão. Pudera: sendo os raios de sol filtrados
através da névoa e difundidos pelo espaço, não se dispõe na nuvem da incidência
direta de luz solar de que depende o sistema que conhecemos. Foi preciso
desenvolver outro, que revelou-se ainda mais eficiente: valendo-se de lentes
para convergir não só os raios solares como também os lunares, ao invés de
projetar sombra, joga luz sobre o raio correspondente do relógio. No Solar da
Névoa, as janelas altas e estreitas que circundam o círculo raiado do hall
possuem essa função. O gelo das vidraças foi confeccionado pelas mulheres da
Vila da Água Grande, que detêm o conhecimento do idioma aquático, necessário
para moldar adequadamente a formação molecular das peças durante o
congelamento. Cada vidraça foi feita de modo a funcionar como uma grande lente,
de forma que a janela que está apontada para a direção do sol acaba por lançar
uma luminosidade mais intensa sobre a fração de círculo a ela correspondente. É
de se notar, no entanto, que, estando a nuvem em constante movimento e a casa
frequentemente mudando de orientação, essas horas não sejam fixas como nos
relógios do Chão. A leitura dos raios aqui não se presta ao conhecimento das
horas do dia, mas a uma outra compreensão de um dado momento. De cada uma das
frações do círculo, partem os caminhos para os outros cômodos (ou mesmo para
fora da casa) e a luz tem a função de indicar qual deles seria mais aconselhável
tomar em cada momento.
<desenho técnico: relógio do hall do
Solar>
Ao
entrarmos na casa, a luz apontava precisamente a direção da biblioteca, o maior
cômodo do Solar. Seguimos sua indicação, até a grande porta entalhada, que Von
Nimbus abriu calmamente, deixando entrever atrás de si estantes que não estavam
forradas de livros, como eu previa, mas de uma infinidade de salamandras, cujo
movimento constante produzia um entrelaçar nauseante de caminhos. Ao notarem
nossa presença, porém, desapareceram como por magia – do tecido vivo que
formavam e que então se esgarçava até tornar-se invisível, víamos brotar a
esplêndida coleção de livros que eu sabia lá existir.
Estivemos
calados por alguns instantes, os olhos percorrendo as estantes na tarefa de a
um só tempo mapear os volumes e compreender para onde tinham ido os pequenos
animais. Embora também ele estivesse surpreso com a visão que acabávamos
de ter, Von Nimbus foi o primeiro a falar. Contou que já estivera na casa desde
sua chegada, mas que o relógio ainda não havia apontado para a biblioteca, de
forma que aquela era a primeira vez em longos anos que a sala era aberta – daí
as salamandras sentirem-se à vontade para percorrer as prateleiras.
Perguntei-lhe o que faziam no lugar e porque vinham se aglomerando visivelmente
na nuvem nos últimos meses. Ele sentou-se de costas para as vidraças de moldura
colorida e convidou-nos a ocupar as cadeiras próximas. “Conto conta. Ouviu aqui
ali?” Como balançássemos a cabeça negativamente, ele se pôs a contar o mito das
salamandras.
A
lenda conta que esses animaizinhos são originários do Chão e que, num tempo
ancestral, subindo pelo tronco de uma árvore muito alta, os primeiros deles
teriam alcançado o Reino da Sublimação. Carregados pelas nuvens, não souberam
voltar e aqui ficaram e se desenvolveram, agilmente se espalhando pelas mais
diversas nuvens. Profundas conhecedoras de tudo quanto existe aqui como no
Chão, quando uma nuvem se aproxima do momento de sua chuva final, elas auxiliam
todos os seres que ali estão a realizar a desafiadora tarefa de reunir-se ao
solo. Sempre que se vê uma grande quantidade de salamandras num mesmo lugar,
pode-se esperar que a precipitação não tarde. No mito da chuva de Clareada, um
dos guias que a nuvem prepara são precisamente as salamandras.
Von
Nimbus prosseguiu contando-nos que, pelas pesquisas de seu tataratataratataravô
e de acordo com os relatos de habitantes de outras nuvens que já precipitaram,
cada nuvem é um ser vivo que tem um ciclo de vida determinado. Umas são
maiores, outras menores; umas passam a vida toda nas partes mais baixas do céu,
enquanto outras passam a maior parte delas nas aéreas altas ou médias; algumas
mudam de forma diversas vezes, enquanto outras apegam-se ao seu primeiro
formato, que vai apenas crescendo e diminuindo proporcionalmente. Mas todas elas um dia choverão por completo, e
cada uma deve encontrar a sua maneira de passar por essa experiência.
Aparentemente,
Clareada tem uma personalidade com inclinação ao exuberante, tendo preparado
para este momento os mais deslumbrantes eventos naturimbus. Há rumores
de que imensas cachoeiras estão se formando nas periferias e outros eventos,
ainda não testemunhados ou imaginados, já estejam em curso.
Pelo
que conta nosso novo amigo, a nuvem teria, ainda, pedido o auxílio de certas
criaturas aladas, que a acompanharam de longe durante toda a sua vida, para
coroar esses momentos finais – trata-se justamente do Grou-iriano. As
criaturas, que sempre se serviram da natureza generosa de Clareada para
descansar ou se alimentar, prontamente atenderam ao seu pedido. Centenas de
ovos como o de Pitoquinha foram distribuídos pela nuvem e a essa altura, os
filhotes todos já se tornaram aves maduras e majestosas, como as nossas. Cada
família está agora em companhia de aves suficientes para carregar seus membros
quando a nuvem se dissolver, levando-os a conhecer as maravilhas que preparou
e, em seguida, aos lugares onde desejarem morar a partir de então – no mito da
chuva, são representadas pelo guia de alturas. Aliás, fica assim explicado o
súbito sumiço dos inúmeros visitantes que frequentaram nossa cabana durante
alguns dias após o nascimento de Tôca: certamente quando se viram na companhia
de outros pássaros, contentaram-se em se entreter com eles.
Perguntei-lhe
então sobre o terceiro guia que o mito menciona, ao que ele me respondeu
simplesmente estendendo a mão esquerda, em cuja palma repousava a mensagem do
ancião. Levantou-se em seguida e, enquanto passava o indicador sobre as
lombadas dos livros empoleirados nas estantes, puxando levemente para fora
alguns deles, contou-nos que este guia associa-se ao mito do Semeador. Conta-se
que o primeiro homem que alcançou o Reino da Sublimação o fez como fizeram as
salamandras: escalando os galhos de altíssima árvore e agarrando-se a uma nuvem
que passava. Alguns chamaram-no louco. Outros, mais leves, trataram de
acompanhá-lo. Foram chamados de Alados, embora não tivessem mais do que suas
pernas e braços para, troncos acima, os trazerem às nuvens. Percebendo que
poderiam viver cá, voltaram para buscar algumas sementes escolhidas com
cuidado, de onde acreditavam que nasceria tudo aquilo de que pudessem precisar.
Elas de fato bastaram ao estabelecimento de uma vida plena. Acredita-se que os
Alados, afim de garantir para as gerações seguintes a manutenção das espécies
que trouxeram, espalharam-se pelas nuvens levando novas sementes carregadas de
mensagens e, sempre que se aproxima a chuva final da nuvem onde estão, atraem
para si alguém que será o Semeador. A função deste é levar a semente a outra
nuvem ou a outro Reino, para que lá germine e cresça. Mas se aquele que recebe
do Alado a semente não é capaz de compreendê-la, ele não se torna Semeador, e a
história dessa espécie é interrompida. É provável que Valentina tenha
justamente encontrado com um desses seres ancestrais, por isso a importância
visceral de compreendermos o que vem escrito no Grão Lufo.
<foto: teto da biblioteca>
Entre
os livros que havia destacado, Von Nimbus selecionou alguns, que colocou sobre
a mesa para folhearmos. Traziam os códigos de escritas de outras nuvens, mais
antigas do que Clareada. Durante horas estivemos procurando, sem encontrar, um
sistema de símbolos que pudesse ser aplicado à mensagem do ancião. Procuramos
depois, obtendo igual resultado, entre os livros de escrita do Chão. Foi
Valentina, descansando os olhos no teto após acompanhar o silencioso caminhar
de uma salamandra, com o pensamento nos deliciosos ovos nevados que faz D.
Clara em Neve, quem encontrou os símbolos que procurávamos. No centro de uma magnífica
rosácea que convida a luz a entrar na biblioteca, organizavam-se, junto a
outros semelhantes, os símbolos do Grão Lufo. Dele, em círculos concêntricos,
partiam símbolos pertencentes a outros sistemas, que acabávamos de consultar
nos livros. Von Nimbus não pôde conter um fascínio desconcertado: passara a
infância admirando aqueles desenhos sem dar-se conta de que eram a origem de
todas as outras escritas, que a circundavam como constelações na rosácea. Fomos
assim compreendendo as correspondências entre os sistemas e testando as
possíveis combinações, até que, finalmente, Von Nimbus pareceu estar
verdadeiramente satisfeito com a tradução. Convidou-nos a sentar novamente,
desta vez, no centro da sala, ocupando cada um dos vértices de um triângulo equilátero
invisível, e começou a ler em voz alta a mensagem traduzida:
“Toquei o céu, tempo
permeável.
Trilhas de vento vi.
Sete são as maravilhas na
terra
– de lá parti.
Embrenhei-me,
De invisível caminho
tecelã
No tear as sete cores do
arco-íris.
Sou sol, chuva e manhã.
Habito o inefável e
distante dentro,
As 7 notas musicais.
Não me perco se conheço
Em Clareada as sete
maravilhas finais.”
Tão
logo encerrou-se a leitura, entrou pelas janelas sonoro vendaval, agitando as
páginas dos livros sobre a mesa, fazendo girar os indicadores de vento das
ombreiras de nosso anfitrião e, finalmente, forçando-nos todos a fechar os
olhos. Quando o vento enfim cessou, fomos relaxando os músculos retraídos pela
tensão e percebendo na palma cerrada da mão esquerda, incômodo volume.
Simultaneamente, desenrolamos os dedos e, recolhendo as pálpebras, descobrimos
nas mãos cada um uma pequena semente, uma de aspecto diferente da outra. O Grão
Lufo havia desaparecido.
Von
Nimbus explicou que era preciso ter todo cuidado com as sementes, pois deveriam
nos acompanhar durante a chuva e seguir conosco depois dela, para onde quer que
fôssemos. Nesse destino desconhecido onde nos sentiremos acolhidos, ali devemos
plantá-las. A minha abriguei com cuidado no bolso interno da touca que me aquece
as orelhas, certamente o lugar mais seguro possível.
Como
nos sentíssemos exaustos, deixamos a biblioteca. A luz azulada já entrava pelas
janelas do vestíbulo, indicando a escadaria que levava aos quartos do Solar.
Fomos gentilmente convidados a passar a noite aqui para recobrar nossas forças.
Como, olhando pela vidraça, Valentina notasse que Tôca e Heitor dormiam de
pescoços entrelaçados, decidimos ficar.
Torno
a cobrir a janela com a cortina leve e, levantando-me, toco com a sola dos pés
o piso macio e quente em direção ao leito. Bem-vindo o repouso que irá me
acolher...
<desenho
técnico: sementes do Grão Lufo>
<dupla
de páginas com foto: imagem projetada no chão pela cortina>
[Nicodamus,
com voz mais firme]
Amanhece
gerísia, 23 de promis de 1081, o primeiro dia da chuva e da despedida de Clareada
Filtrada
pelo tecido rendilhado, a luz entra no quarto traçando no chão delicado caminho
luminoso até a porta. Sentindo-me renovado, visto o casaco e sigo a indicação.
[Nicodamus
– gravação ruidosa]
Acabamos
de nos despedir do Solar da Névoa, após uma pequena digressão nos caminhos do
relógio: a luz indicava a porta de saída, mas antes de segui-la fizemos uma
rápida visita à biblioteca. Von Nimbus dissera que tinha algo importantíssimo a
fazer ali – logo percebemos tratar-se de mais um ato de extrema gentileza:
presenteou-me com seu volume histórico do livro “Clareada desde as primeiras
gotículas”*, a edição mais completa que existe sobre a história da nuvem!
Acabávamos de fazer o desjejum na aconchegante cozinha (sugestão que nos fizera
a luz que entrava pelo saguão tão logo descemos a escada) conversando sobre a
formação das nuvens e os momentos propícios para o desenvolvimento da flora e o
estabelecimento do homem.
Agora
nos encaminhamos Vale e eu, voando com Tôca, para a cabana, onde devemos tomar
as últimas providências para presenciar a chuva, separando os poucos objetos
que nos acompanharão. Von Nimbus fica no Solar, realizando tarefa de igual
teor, embora eu possa calcular que esta seja para ele infinitamente mais árdua.
Quantos séculos de história habitam aquela casa! E há tão pouco tempo para
realizá-la: ele deve nos encontrar antes da abertura completa das gerísias para
seguirmos juntos pelos eventos que a nuvem preparou.
*o
volume encontra-se entre os pertences da caixa de Nano. Está em estudo a
possibilidade de uma futura publicação do livro (N.O.)
[Nicodamus
— voz de Valentina e Von Nimbus ao fundo]
Surpreendente
a concisão de Von Nimbus! Não trouxe consigo senão um pequeno saco com víveres
e um cantil. Quando perguntei-lhe se havia enviado muita coisa para seu próximo
destino, como eu mesmo fiz com a maior parte dos pertences referentes à
pesquisa, disse-me apenas que tudo o que estivera com ele pertencia à nuvem e
com ela deveria chover, pois cada alfinete faria diferença para ela. Súbito,
pareceram-me desproporcionalmente grandes os alforjes em que colocamos alguns
cadernos, livros, biscoitos de gira-nuvem e alguns outros alimentos…
Mas
não há tempo para rever as malas: vamos tomando nossas posições para partir
imediatamente. Já que diversos eventos naturimbus estão acontecendo por toda a
extensão sublimatorial de Clareada, não podemos perder tempo. Estamos a caminho
de um deles!
<foto: primeira parada após a
saída>
[Nicodamus
– ruídos de vento]
Semísia, 24 de promis de 1081
Retorno, enfim, com as retumbantes novas
que o encontro com Von Nimbus nos colocou no caminho.
São tão admiráveis as novidades, que
temo não saber contá-las satisfatoriamente em palavras…
Quando saímos de casa, não imaginávamos
a grandeza do que estávamos prestes a viver… Poucas horas de voo haviam se
passado quando tudo ao nosso redor começou a mudar de cor – entramos em uma
névoa violeta! Von Nimbus fez sinal
para que aterrissássemos, e assim pousamos em um trapiche que ligava uma porção
de nuvem firme a uma grande extensão de névoa prestes a chover. Ali se podia
ver a maior plantação de tuliquídeas
da nuvem, todas de cor violeta e algumas com interior dourado! "Hoje,
iniciou chuva. Esperemos, vai começar já", disse-nos nosso estimado guia.
Então, quando menos esperávamos, uma
ondulação do ar iniciou-se além píer. Faixas de luz violeta escuro e violeta
claro alternavam-se no céu e faziam o movimento de uma cachoeira. Pontos
dourados apareciam como estrelas brilhando em seu interior. Era uma verdadeira cachoeira de aurora! A
primeira reação que eu e Vale tivemos com a queda da luz, foi de nos
encolhermos. A sensação era de que iríamos nos molhar inteiros, mas a cachoeira
parecia ter inteligência própria e não invadia o espaço onde estávamos. A visão
era surpreendente! Luzes dançavam e caíam, dançavam e caíam… Pontos dourados
apareciam como estrelas brilhando em seu interior – e também caíam...
E estava eu imaginando para onde toda
aquela luz iria quando percebi que soava uma música… O binofotomultiscópio não conseguiu distinguir a melodia, mas
registrou que eram variações de si em muitas oitavas, como se tocados por
muitos instrumentos diferentes. Era uma melodia introspectiva e com um toque de
melancolia. Por algum motivo misterioso, imediatamente, passei a refletir sobre
toda a experiência adquirida em Clareada e os possíveis efeitos que elas terão
sobre minhas ações daqui pra frente...
Neste momento, tão placidamente quanto
havia começado, a cachoeira de aurora aos poucos foi parando, parando... Com um
sinal, Von Nimbus avisou que devíamos voltar às aves. Estávamos os três mudos,
incapazes de proferir uma palavra sequer… E assim partimos, até atingirmos o
vento nevado do céu à frente. O frio extremo fez com que voltássemos à nossa
consciência – e com que eu tivesse clareza para fazer esse registro.
Seguimos viagem: aparentemente não temos
muito tempo. A porção da nuvem em que estávamos não existe mais – já lá se vão
as Montanhas Sem Fim e os campos de tuliquídeas…
Outra região deve estar começando a passar pelo mesmo processo. Acabo de
perguntar a Von Nimbus se teríamos tempo de visitar a Vila Antiga – tantas
vezes foi preciso adiar tal expedição e agora, com pesar, vejo ameaçadas as
possibilidades de realizá-la: pergunto-me se não estamos precisamente prestes a
perder essa porção da nuvem que me seria tão caro conhecer. Embora reticente,
ele não descartou a possibilidade. Fará sinal para pousarmos se as aves
passarem por perto da Vila enquanto nos levam à próxima Maravilha.
[Nicodamus
– gritos]
O sinal! Ele está fazendo o sinal! Peça
para ela descer! Porque ela não desce? Deve haver alguma maneira!
[Nicodamus
– voz baixa]
Por pouco não perdemos o ponto onde se
pega a trilha para a Vila Antiga. As aves resistiam a descer antes de chegar à
próxima maravilha – são, de fato, muito fiéis ao compromisso que assumiram com
a nuvem. Mas finalmente conseguimos convencê-las e estamos prestes a entrar no
Atalho do Caramujo, que leva às ruínas. A entrada é muito semelhante à do
Espreme-que-dá. Na verdade, é tão pequena que me teria passado despercebida se
cá estivesse sozinho à procura dela… Será preciso usar um esfriadeiro para condensar as bordas da abertura e aumentar a
passagem durante os primeiros passos, que serão trilhados de cócoras. Depois o
espaço cresce um pouco e pode-se dispensar o uso do instrumento, mas ainda
assim será preciso caminhar agachado. Von Nimbus aconselha que se faça o
percurso a cambalhotas.
[Nicodamus
– ofegante]
Dificílima esta trilha! Embora de fato o
espaço aumente lá pelo quinto passo, no sexto já a inclinação é tamanha que não
se pode conter o corpo. Involuntariamente, fiz o percurso girando sobre minha
cabeça e acabo de chegar ao fim da trilha, um tanto descomposto. Von Nimbus
alerta que urge levantar e seguir: temos pouco tempo. É lamentável! Tenho a
certeza de encontrar aqui valioso material para a pesquisa.
<dupla de páginas com foto: imagem
das ruínas da Vila Antiga>
[Pausa
– recobra o fôlego]
Avistamos agora as ruínas do que um dia
foi uma grande cidade. Caminho entre as memórias da nuvem, resquícios de uma
metrópole conhecida entre os sublimados e a gente do Chão, lembranças que se
podem tomar entre as mãos… Não se parecem em absoluto com a imagem da
destruição – antes se apresentam como visões de um verdadeiro sonho. O que
resta das casas, muito se assemelha a pequenos palácios de cristal, recobertos
de torres de gelo moldadas pelo gênio imprevisível de um forte vento
espiralado, que assolou a cidade.
Até a sexta geração dos Nevoeiro, a vida transcorreu
tranquilamente em Clareada. A cidade, que muito havia ganhado em tamanho e
beleza, recebia visitantes de toda parte. Mas a sétima geração conheceu a fúria
de que a nuvem era capaz: num dia quente e tranquilo, sem aviso, um vendaval
carregou em gélido redemoinho casas, cafés, hotéis, restaurantes, coreto e tudo
quanto encontrou no caminho. Ninguém se machucou e houve mesmo quem,
recobrando-se do susto, soubesse se divertir em voos circulares, como fazem as
andorinhas antes das tempestades. Mas quando tudo acabou, a cidade estava
perdida: embaralhada; casas empilhadas umas sobre as outras; hotéis com seus
quartos e corredores desmembrados; a praça sem carrossel; e tudo –
absolutamente tudo – coberto por uma irremediável camada de gelo. Fazia-se
exceção ao Solar da Névoa que, situado longe do centro, resistira à violência
do vento. Compreendeu-se que era preciso abandonar a cidade e reconstruir a
vida segundo um novo entendimento.
Grande parte dos habitantes,
impressionados com o que haviam presenciado, despediram-se da nuvem no primeiro
balão, mudando-se para outros lugares. Os que ficaram fizeram um reconhecimento
do sublimatório e constataram que
apenas a cidade havia sido atingida – fauna e flora permaneciam intactas. E
mais: a nuvem estava maior. Havia novas regiões onde já as sementes brotavam e
clareiras mais distantes do centro onde pequenas vilas poderiam se formar.
Começaram a se erguer as casas, com base em um pensamento todo novo. Pequenas e
feitas com o mínimo possível de material, prestavam-se somente a abrigar do
frio e acolher o sono. O clareado estava decidido a viver a essência: o
encontro com a vida. Foi esse povo que encontramos, já na décima segunda
geração dos Nevoeiro, não só fiel a esse entendimento, mas cada dia mais
consciente dele.
A cidade que agora percorremos nos
parece um lugar encantado, existente apenas no nosso imaginário – o sonho do
castelo adormecido, cuja torre abriga o sono profundo da princesa. No entanto,
cá estamos de fato, sentindo o gelo romper-se em estalinhos sob cada passo e
ouvindo os cristais que se formam em toda parte dedilharem com doçura suas
notas agudas. Com dificuldade, o raciocínio reconstrói a bela cidade que aqui
havia antes – ela sim, vista apenas com os olhos da mente. Alguns indícios se
colocam com mais clareza e podemos identificar sem dificuldades um pedaço de
cozinha de uma casa que veio se juntar ao quarto de outra, por exemplo. Há
ainda pequenos monólitos onde se podem ler inscrições feitas em língua antiga e
identificar, vez por outra, um desenho ornamental – frequentemente
representando uma salamandra.
Von Nimbus agora faz sinais claros de
que devemos partir. Os pássaros encontraram alguma maneira de nos alcançar aqui
e já nos esperam para seguir viagem. Apressar-me-ei em colher algumas amostras
antes da nossa saída.
[Nicodamus
– ruídos de vento]
Quão intenso é percorrer a
nuvem no dorso de tão veloz criatura! Olhando-se à frente, nada se vê além de
um puríssimo branco. De repente, porém, esboça-se uma pequena mancha levemente
escurecida, que vai rapidamente crescendo, tomando forma e aumenta até se
tornar o topo de uma árvore gigantesca. Um minuto mais e se forma ao longe
outra pequena mancha que em poucos segundos se transforma num enorme castelo
suspenso. Deixamo-lo atrás de nós e, num átimo, vemos nascer da alvura a torre
mais alta de uma antiga igreja.
Igualmente, cruzamos o
tempo todo com outros pássaros e seus tripulantes, que vêm de outras direções,
coloridos e reluzentes. Embora também eles pareçam se materializar na neblina e
estejam sempre em grande velocidade, em nenhum momento corremos risco de choque
– os grous parecem enxergar de alguma forma tudo o que há a seu redor, oculto
pelo denso véu branco.
Voamos agora, há cerca de
uma hora, e começo a ouvir uma melodia suave, em tom maior, ralentando como
pingos d'água que escorrem do telhado depois da chuva. Cada nota ressoa
ondulante, seu volume abaixando gradativamente até encontrar-se com outra nova
nota, mais forte, que acaba por se comportar da mesma maneira. Por vezes, duas
ou três notas seguem-se quase sem intervalo e ondulam juntas, misturando-se
umas às outras, como os círculos que se formam na superfície lisa de um lago
tranquilo se lhe atiramos várias pedrinhas. O binofotomultiscópio registra uma melodia composta em mi maior, em
diferentes oitavas e com diferentes timbres, como se fossem produzidas por
vários instrumentos. Não tenho dúvidas de que essa inebriante música anuncia a
próxima maravilha!
<dupla
de páginas com foto: ondulações luminosas>
[Valentina
– música ao fundo]
Brisa alegre, Bino! Faz tempo que eu não
venho falar com você, né? Aposto que sua alma elétrica de fotomuitacoisa sentiu falta dos meus registros. Pois eu senti a
sua, meu trambolho mais amado.
Foram tantos os acontecimentos nos
últimos dias, que eu ainda estou processando. Acho que a minha alma também é
elétrica, Bino. Meu raio vive caindo de lá para cá. Talvez seja a hora de
começar a mudar alguma coisa, que ainda não sei o quê. Estou muito confusa.
Ultimamente tenho estado confusa com tudo, acho que a nuvem tem soprado muito
ar para dentro de mim. Ainda bem que a Tôca me entende, acho que ela é
superdotada.
Lá na cachoeira lilás, eu posso jurar que ouvi
o vapor d’água dizer: calma, calma – muitas vezes – calma. E eu me acalmei. Mas
não foi uma tranquilidade que a gente sente quando bebe um chazinho de erva
fresca. Foi como se o tempo tivesse sido suspenso. Isso faz sentido para você,
Bino? Dá um bip se fizer e dois se você estiver me achando estranha.
[Pausa]
Zero bips seu, mas um cafuné da Tôca.
Vou entender isso como um incentivo.
O Nico agora está entretido com as Vitális que não param de jorrar daquela
cabecinha inteligente. Eu estou aqui
fazendo… bom, nada. Estou aqui fazendo nada. Que estranho é ficar parada, Bino!
Mas eu estou gostando, pelo menos, por enquanto.
Estamos agora em uma festa muito bonita
e sinto pelos comichões nos meus pés e na minha barriga que não vou conseguir
ficar parada por muito mais tempo. Nove pessoas já me chamaram para dançar e
não vou poder negar a décima! Quero ver o Nico dançar daqui a pouco, essa
atenção toda que ele está dando para as Vitális
está começando a me parecer um disfarce. Ele não para de reclamar que a gente
podia ter ficado mais tempo na Vila Antiga, e isso, com toda certeza, é outra
tentativa de enganar a timidez. Von Nimbus, por outro lado, está em sua quarta
valsa e segundo coral! Quanta energia!
O décimo convite para dançar chegou! E é
Von Nimbus! Tenho que ir, Bino!
<sequência de páginas com fotos da
festa>
[Nicodamus
– música ao fundo]
Enganei-me: a música anunciava apenas
mais uma das comemorações que os clareados prepararam para despedir-se da
nuvem. Não há como negar que se trata de uma belíssima e admirável festa, mas é
preciso observar que a ocasião não é a mais oportuna. O momento é grave e seria
mais adequado que fosse encarado com seriedade. Mas não posso contar nem mesmo
com o discernimento dos meus companheiros de jornada: Vale e Von Nimbus já
sumiram de vista em rodopios.
Resta-me esperar aqui, pacientemente
lidando com a euforia que cresce ao meu redor e a desconcertante quantidade de
pequenas flores amarelas que, como grãos de milho estourando numa panela
quente, escorrem de meu chapéu cobrindo-me ombros e peito!
Sim, de fato, a música é contagiante! E
essa iluminação que parece viva!... Que deslumbre! [pausa] Mas devo ser mais discreto: vejo apontar em minha direção
alguém que parece muito disposta a testar meus deploráveis talentos de
dançarino...
[Nicodamus
– ruídos de vento]
Alúmia, 28 de promis de 1081
Mais uma vez, enquanto voamos, dito
estas palavras para o binofotomultiscópio.
A ausência de novos relatos em alguns
dos últimos dias deve-se a um único acontecimento: a chegada à Maravilha
Amarela! Atingimos esse evento naturimbus
pouco tempo depois que deixamos a Vila Antiga e fomos rapidamente tomados por
ele – uns mais prontamente do que outros.
A princípio calculei que se tratava de
uma festa organizada pelos locais, mas aos poucos pude compreender que
semelhante espetáculo não poderia ter nascido senão da vontade da nuvem. A maravilhosa
melodia em mi, acompanhava as ondulações de uma resplandecente luz amarela –
eram as partículas da nuvem se liquefazendo e banhando a todos que por ali
passavam! Guiados por essas delícias, chegamos a uma espécie de clareira, um
imenso vão entre as gotículas da nuvem, onde a luz era mais intensa e a música
mais acelerada. Mais encantador do que isso, havia lá um grande baile onde
dezenas de casais flutuantes dançavam esplendorosamente!
Juntamo-nos a eles. Von Nimbus, com uma
pomposa reverência, pediu a Valentina a honra de uma dança que ela prontamente
consentiu, e eu… Bem eu tive algumas dificuldades para me desvencilhar das vitális que não paravam de aparecer
dentro de meu chapéu e casaco… E confesso que, mesmo quando obtive algum
sucesso, permaneci paralisado pela minha costumeira timidez. Precisei contar
com a ajuda de uma eufórica desconhecida que me tirou para dançar, fazendo-me
ver a nuvem girar muito depressa, em infinitas piruetas!
Dias se passaram embalados pela alegria
que conduzia a todos, sem que percebêssemos a existência de fadiga em nossos
corpos ou de tédio em nossas mentes – ou mesmo a passagem do tempo. Notávamos
apenas que o salão, que aumentava gradativamente a cada pequeno chuviscar, por
vezes, parecia ser decorado com a luz amarela derramada sobre a névoa branca e
combinada com um azul celestíssimo, que se revelava em alguns pontos; outras
vezes, a luz do baile tornava-se mais intensa e salpicada de pequenas luzinhas
piscantes projetadas sobre um escuro azul profundo. Ora, toda aquela alegria,
toda aquela exuberância não deixaram espaço em minha mente para que eu aqui
registrasse mais notícias… O que, de fato, surpreende, pois algo muito sério
ali se passou: em uma das manobras que fizemos, eu e minha parceira de baile,
chapéu e touca escaparam-me da cabeça e notei que um pequeno objeto arredondado
caía na imensidão – era a semente do Grão Lufo! Felizmente eu estava muito
desperto: imediatamente conduzi a dança coreografando um mergulho giratório
duplo e, esticando a mão direita, logrei recuperá-la! Considerei mais seguro, a
partir de então, guardá-la no bolso junto à cintura, que posso fechar a zíper,
o que evitou que tal incidente se repetisse por todo o tempo que ainda durou o
baile.
Na última noite, a música tornou-se mais
envolvente, mais alegre, os presentes tornaram-se ainda mais exímios dançarinos
e, num grande êxtase e com perfeição, a melodia acabou numa sequência genial de
notas em mi maior! Os casais fizeram reverências e, em seguida, aplaudiram
longamente o espetáculo. Então abraçamo-nos todos e cada um reencontrou sua
família e seus companheiros, retornando ao dorso das grandes aves e partindo em
direções diferentes num mergulho noite adentro.
Também nós partimos, renovados! Von
Nimbus aconselhou-nos a aproveitar a energia para percorrer um dos trechos mais
longos da nossa jornada. E é precisamente o que estamos fazendo agora…
[Valentina]
Ai, meu guarda-chuva! Von Nimbus disse
que serão duas noites e um dia de viagem até a próxima maravilha! Será que a
Tôca vai aguentar voar tanto? Eu sei que ela é forte mas vou dar um biscoitinho
de giranuvem pra ela. Um biscoitinho
na barriga sempre vai bem!
Ei, Von Nimbus! Me ajuda a lembrar
aquela música do baile! O tédio e o vento vão me congelar se eu ficar aqui
parada.
[Valentina
e Von Nimbus – ruídos de vento]
Chegou a metade do dia, lá vem ele
entrando em nossa casa
e aquecendo nosso chão
Com o chão quentinho,
engraçado é nosso caminho,
Os pés começam a coçar
e não paramos de gargalhar
A correr e a dançar,
a pular e a gritar!
É impossível parar!
A correr e a dançar,
a pular e a gritar!
É impossível parar!
Ele logo vai embora,
adeus, até outra hora!
E logo voltamos a trabalhar
[Nicodamus,
levantando a voz]
Acabo de me dar conta de que Valentina,
pulando à minha frente, cabeceou o binofotomultiscópio
e acidentalmente o deixou gravando. Depois disso, ela tem cantado tão alto sua
música preferida do baile que o aparelho acabou
por registrar a letra…
Ela fala sobre as cócegas que as
formigas sentem quando o sol entra no formigueiro. Essa canção foi trazida para
Clareada pelos antepassados terrestres de Von Nimbus.
Bem, que me resta fazer? Juntar-me-ei
aos outros cantando também…
A
correr e a dançar,
a
pular e a gritar!
É
impossível parar!
<foto:
Von Nimbus e Heitor voando a frente dos irmãos>
[Valentina]
A gente parou… Opa, volta! Esqueci de
falar a data!
Hoje é Alúmia, dia 29 de promis.
Muito bem! A gente parou um pouco para
descansar. Que travessia! A Tôca e o Heitor começaram a descer, a descer, até
que finalmente pousaram. Agora estão tomando água e comendo uns biscoitinhos.
Se eu bem conheço o olhar da minha amiga passarinha, ela vai dormir daqui
alguns segundos. Quando a Tôca está com muito sono, ela fecha os olhos quase
que por completo, deixando só uma frestinha aberta para caso alguma coisa
importante aconteça antes de ela dormir. De repente, ela dá um tremelique e,
puf, apaga completamente. Olha lá, ela acabou de tremelicar!
Von Nimbus está conversando com os
besouros que vivem no cabelo dele. Ele me disse que é um grupo antigo de
besourinhos e que eles vêm morando no cabelo das últimas 6 gerações de sua
família. Eles dizem que a cabeça de Von Nimbus tem a melhor vista de
todas! Von Nimbus acha que ele está, na
verdade, ficando careca mesmo.
Já o Nico disse que foi procurar plantas
novas. Mas estou vendo ele daqui de longe e ele está é ensaiando uns passinhos
de dança escondido! Que orgulho do meu irmão! Fui eu que fiz! No baile amarelo
combinei com o Von Nimbus de encontrar um par para o Nico. Não precisou mais que
uma piscada molhada para conhecer a Lina Zu e saber que era ela! A risadinha
mais simpática da nuvem! E como dança! O Nico com ela parecia que tinha dançado
a vida toda, ele flutuava!
Ai, ele está voltando. Será que me
ouviu? Agora ele vai querer usar aqui para falar das “plantinhas”.
<foto: grande árvore
liquefazendo-se>
[Nicodamus
– ruídos de vento]
Vincúlia, 30 de promis
Acabamos de presenciar um momento de
extrema beleza! Em nosso curso de voo cruzamos um vale onde havia um belíssimo
exemplar de uma rara árvore do Reino da Sublimação: a lamenteira-de-luzia.
Frondosa, com folhas simples, de
coloração rosada, que medem de 15 a 20 cm, essa espécie pode atingir 15 m de
altura. Na idade madura, seu galho central produz no alto da copa a única flor
de toda a vida da árvore que, ao desenvolver-se completamente, torna-se
luminosa, desprende-se do cálice e flutua até encontrar uma região escura no
céu, onde se fixa. Este processo pode levar até 80 anos, depois do que, a
árvore definha até sua morte.
Eu nunca tivera a oportunidade de deitar
os olhos sobre um ser como esse e há muito ansiava por este dia! Foi algo
especial, pois a árvore que encontramos em nosso caminho já apresentava a
admirável flor no início de seu desenvolvimento. Além disso, fomos presenteados
com um espetáculo à parte: no justo momento em que passamos pela árvore, a porção de nuvem que a nutria choveu.
Também a árvore condensou-se da base ao topo. Embora eu não tenha podido conter
a tristeza de pensar que aquela flor jamais atingiria a maturidade, foi algo
emocionante ver tão sólido ser liquefazendo-se. Felizmente, com a ajuda de um
grande mergulho de Tôca, houve tempo para colhê-la e catalogá-la.
<desenho técnico:
lamenteira-de-luzia>
[Nicodamus
– à meia-voz]
Gerísia,
1 de intermítis de 1081
Acabamos de descer do dorso dos pássaros
e agora caminhamos uns atrás dos outros. Estamos em uma região tão densa da
nuvem que, mesmo sob a proteção dos conhecimentos de voo dos nossos amigos grou-íris, essa forma de deslocamento se
torna perigosa, pelo risco de chocarmo-nos com qualquer coisa que esteja a mais
de 1 m à frente, oculta pela névoa. A trilha é dificílima: repleta de passagens
escondidas, em que podemos cair, perdendo-nos do grupo; atalhos estreitíssimos
em que arriscamos ficar presos; e possíveis esconderijos para grandes feras
que, por causa da neblina, não podemos ver. Toda atenção aqui ainda pode ser
insuficiente. Encerro neste ponto este relato, a fim de não perder a
concentração necessária para empreender este trecho da jornada.
[pausa]
Essa agora! Nem toda precaução basta:
acabo de deslizar por uma passagem oculta! Não vejo sinal dos outros. [gritando] Alô! Alguém me ouve???? Von
Nimbus???? Valentina?
[pausa
longa]
Ótimo! Pelo jeito ficarei aqui até a
última gota de chuva.
[pausa
muito longa. Gritos histéricos]
Socorro! Alguém! Qualquer pessoa!!!!!
Qualquer ser!!!!!!!
[pausa
curta]
Ah, sim, aí estão vocês! Claro, eu
imaginava que não estavam longe… Sim, sim, retomemos a caminhada… Como? Atalho
do “Vai-mas-Fica”?
<foto: amanhecer em um
grande lago>
[Voz
desconhecida]
MINHA NOOOOSSA!!! Que pássaros
bonitos!!! Qual o nome deles?! O meu é Marvin, sou o filho do dono do armazém
da vila. Legal a cor do seu casaco! Minha cor favorita é laranja! A cor, porque
a fruta às vezes é azedinha, gosto mais das nuvanjas
que são sempre docinhas! Eu gosto muito mais de doces do que de salgados, sabe?
E vocês? Os pássaros eu já posso imaginar que gostam de sabores refrescantes e
biscoitos de giranuvem. Nós também
fomos presenteados com um pássaro, verdinho, verdinho, coisa mais bonita! Mas o
nosso não é tão grandão assim não! Esses daí dão uns 5 do Rubens Capim! Eu
apresentaria ele a vocês, mas é que meu pai saiu pra dar uma volta nele, e
vocês sabem como estão esses passeios naturimbus
em Clareada, né? Uma maravilha mais maravilhosa que a outra, virge! Eles vão
demorar um pouco pra voltar por causa disso. MAS EITA! Agora que eu tô pensando
aqui comigo, ou vocês deram uma sorte danada ou vocês vieram de muito longe,
porque tem uma maravilha bem aqui, pertinho de casa! Vocês querem que eu leve
vocês até lá? Eu topo, claro, tô aqui de férias sem fazer nada mesmo, fico
sentado aqui o dia todo coçando meu joelho, olha como ele já tá ficando
vermelho de tanto que eu coço! Vou lá pegar o mapa pra gente não se perder. Mas
ó, pode confiar em mim que não-tem-erro!
[Nicodamus]
Elíris, 2 de intermítis de 1081
Começa um novo dia em uma região remota
e pouco povoada de Clareada! Seus mais abundantes moradores saúdam o amanhecer:
lumepássaros entoam belos cantos, eleflutantes realizam acrobacias
auriculares festivas, aeropeixes
agitam cores e luzes em cardumes voadores de alta velocidade – e assim também o
fazem todos os outros animais, explorando suas maiores habilidades na
comemoração de um dia que começa.
Homens, há poucos por aqui. Não é
difícil imaginar a razão, sendo tão difícil o acesso a esta região. Alcançamos
agora a Vila da Água Grande, um pequeno conjunto de casinhas que ficam à beira
de um lago de tamanho avantajado. Von Nimbus diz que daqui devemos caminhar até
a próxima maravilha. Ele não é o único a dizê-lo (embora seja o único a fazê-lo
pausadamente): um pequeno menino que encontramos sentado à porta de uma pequena
casa, com um pequeno jardim, repleto de pequenas flores, também acenou com a
notícia da proximidade dessa maravilha.
Aparentemente, sua família é original de
uma região aérea de ventos fortes, um lugar onde tudo acontece muito rápido.
Seus pais decidiram mudar-se para Clareada em busca de uma vida mais pacata,
mas o menino conserva na fala a agilidade da nuvem natal. Com efeito, falou-nos
tão depressa que eu não saberia contar exatamente o conteúdo do que nos disse
(a própria Valentina confessou-me não conseguir acompanhar todas as palavras).
Notei, no entanto, que a “estabanadice” de minha pequena irmã, curiosamente,
veio mais uma vez contribuir para a expedição: ela havia ligado novamente sem
perceber o gravador do binofotomultiscópio,
e a fala de Marvin foi registrada – de volta ao Chão terei equipamentos para
desacelerá-la e, talvez, compreender melhor o que nos disse*.
Pelo que posso inferir no presente
momento, estamos aqui esperando que ele volte de dentro da casa para partirmos,
tendo-o como nosso guia até a próxima maravilha… Ah, vejam, já está de volta!
Respirem fundo, exploradores, penso que
vamos caminhar depressa agora!
*Foi
de fato necessário desacelerar um pouco a fala para que pudéssemos
transcrevê-la. (N.O.)
<foto: Marvin à porta de sua casa>
[Valentina]
Elíris,
2 de… Ahn? Não precisa?
Aaaaahhh!... Só no primeiro do dia então… Tá!
Então…
Olá, Bino! [pausa] Cumprimento mesmo, eu que decido! Vamos de novo:
Como vai, Binão? Aqui estou vestindo um
novo modelo de capa de chuva! Você consegue me ver? Acabamos de ganhar várias
capas do Marvin, elas são muito lindas! A minha é verde esmeralda e me caiu
direitinho!
Marvin disse que a próxima maravilha é
de uma maravilhosidade molhada e que
nossas capas não serão suficientes. Até mudei a sementinha que ganhei do Grão
Lufo de lugar, agora ela está no bolso mais alto do meu casaco – o lugar mais
protegido e quentinho para uma semente ficar. Já pensou se ela brota no meu
peito?
O Nico é que não conseguiu achar uma
capa que ficasse bem nele. Meu irmão herdou as pernas do nosso avô, as mais
longas dos Bernaldo! Mas eis que a família do Marvin é toda de pessoas
pequenas, então meu irmão se encontra com as canelas de fora nesse momento.
Espero que você não se aborreça, Bino,
mas vamos te deixar aqui com a Tôca, tá? É melhor você não se molhar. Seus
circuitos são resistentes ao orvalho mas sensíveis para toda aquela água. Não
queremos ninguém gripado, não é mesmo? Mas tenho certeza de que você e a Tôca
vão ficar muito bem juntos!
Bom, agora tenho que ir! Todos já
terminaram de se vestir, e o Marvin está avançando lá na frente. Ele é mais
rápido que um esquilo voador em dia de vento.
<desenho de Nicodamus vestindo a capa
do pai de Marvin e Valentina vestindo a capa que ganhou, feito pela exploradora
em seu caderno de campo>
<foto: floresta (caminho da
maravilha)>
[Nicodamus]
Semísia, 3 de intermítis de 1081
Hoje é um dia fresco e verde no interior
da floresta de Clareada. Para cá nos trouxe nosso pequeno novo guia, depois de
nos fazer vestir capas e galochas que apanhou em sua casa. É verdade que eram
um tanto apertadas, e a capa mal pôde cobrir o binofotomultiscópio para protegê-lo adequadamente (pelo que decidi
deixá-lo no alforje que Tôca está levando), mas foram de grande ajuda. Deixamos
os pássaros diante da casa do pequeno, pois segundo Von Nimbus, não se deve
entrar nessa parte da floresta senão cada um pelos próprios pés, sendo boa a
ocasião para o descanso dos grous, que, mais velozes do que nós, poderiam nos
alcançar mais tarde.
Marvin levou-nos então até um evento que
nos enfeitiçou a todos: a Maravilha Verde. Nosso caminho foi uma larga trilha
entre árvores verdes da raiz à última folha. Íamos banhados pela luz dourada
que atravessava as copas e ouvindo a palestra de Marvin sobre as fadas, cervos
de folha, insetos gigantes e lebres prateadas que vivem na floresta (estas
últimas, curiosas, apresentaram-se a nós algumas vezes pelo caminho). Após
pouco menos de uma hora de caminhada Von Nimbus, extasiado, apontou para uma
clareira poucos metros à nossa frente. Uma gigantesca sequorosa erguia-se imponente. Era tão verde e robusta como as outras
árvores que havíamos visto, mas de acordo com a maneira como a luz incidia
sobre sua superfície, sua forma oscilava levemente, como se estivesse submersa
em vasto oceano.
Valentina foi a primeira a experimentar
o toque na verde casca e algo inimaginável aconteceu: sua mão atravessou a
superfície! Diante de nossas estupefatas feições, Marvin soltou uma gostosa
gargalhada e, correndo, atirou-se contra o tronco, sumindo em seguida dentro
dele. Valentina, que também ria, prontamente o seguiu. Cedi a preferência a Von
Nimbus, mas como ele a devolvesse a mim, antes que tomássemos uma posição por
nós mesmos, uma metade do corpo de Marvin saiu para fora da árvore e nos puxou
para dentro…
E que belo salão lá encontramos! O
interior do tronco era imenso, com anéis de água concêntricos que partiam
enormes desde a casca e diminuíam até chegar ao centro, entrecortados por uma
garoa que subia delicadamente do chão. Estávamos dentro da primeira árvore de
Clareada! Generosa, ela nos sussurrava suas memórias sobre seu crescimento, as gerações de famílias de pássaros que
nela moraram, os casais de namorados que juraram amor sob sua proteção, a
sensação de florir pela primeira vez…Também disse coisas sobre conversas que
ouvia na floresta, histórias trazidas por outras árvores e seres de toda sorte,
carregadas até ela pelo vento. Quanto mais nos aproximávamos do centro, mais
antigas eram suas lembranças e, assim como uma memória humana, mais esparsos e
aleatórios eram os contos sussurrados. Nos anéis mais externos, soava uma melodia
forte, fresca e fantástica! Infelizmente não pude identificar o tom em que foi
composta, pois estava sem o Bino...
Lá estivemos durante horas, inebriados
pelas palavras da sequorosa. Até que
a garoa que subia tornou-se mais intensa, repleta de grossos fios luminosos.
Encantados por eles, agarramo-nos às suas pontas e eles levaram todos ali
presentes para o topo da árvore, de onde nos lançaram para a noite densa. Os
pássaros todos já nos esperavam ali e levaram-nos em segurança para baixo.
Agradecemos o convite de Marvin para
passarmos a noite em sua pequena casa, mas preferimos acampar alguns dias na
floresta, conhecendo melhor os personagens das histórias que a sequorosa compartilhou conosco.
E cá estamos, desde muito cedo
explorando os encantos deste verde abrigo… A primeira surpresa veio nos
encontrar ao amanhecer: com o clarear do dia, demo-nos conta de que a sequorosa desapareceu, bem como boa
parte das árvores que a circundavam. Além disso, enquanto caminhamos,
encontramos alguns trechos da difícil trilha que percorremos para chegar a esta
região – recombinados com a ampla aleia de árvores verdes, já não se mostram
tão desafiadores quanto há dois dias.
<desenho técnico da lebre prateada,
retirado do caderno de campo de Nicodamus>
[Valentina]
Eu só queria dizer que a melodia da sequorosa estava em fá…Vim te contar
porque sei que você gosta de sempre registrar o tom das músicas maravilhosas,
mas, desta vez, você não estava com a gente, e o Nico não soube te dizer. Meu
irmão é uma pessoa muito boa, mas precisa esticar os ouvidos. Lá dentro, no
meio de tanta história bonita, tinha hora que ele parecia mais preocupado em futucar alguma coisa no bolso do casaco
do que em escutar! Até me desconcentrou, de tanto que não parava quieto:
remexia o bolso da cintura, depois o do peito, depois voltava pro da cintura, e
assim ficou um tempão. Se eu não conhecesse meu irmão, acharia que ele estava
improvisando uma coreografia maluca.
Mas eu ouvi tudo com muita atenção,
Bino. Ouvi tudo direitinho… Cada letra de cada palavra de cada história… Pensei
tanto nos meus pais. [pausa] Estou
com saudade deles. E do vovô Bernardo… Mas dele eu não vou poder matar a
saudade nem quando a gente voltar pro Chão… Aliás, depois que a gente tiver
voltado, eu vou ter uma saudade a mais, um sanduíche de saudade muito grande e
recheado de outras saudadinhas: a da
nuvem e de tudo e todos que eu conheci aqui! Vou cuidar de aproveitar tudo o
que a gente está vivendo em Clareada, sem pensar em qual será a próxima
aventura. Até porque está difícil pensar nisso sem cair uma chuvinha dos
olhos...
[Nicodamus]
Undúnia, 4 de intermítis de 1081
Ah! Quantas alegrias nos dá esta estada
na floresta! Estamos aqui há apenas dois dias e, tamanha foi a nossa entrega
para com ela que já nos sentimos em casa! E como ela também se dá para nós!…
Tantas frutas, tantos sons, tantas cores! De nossa parte, para merecê-lo,
agimos com o maior respeito possível: fazemos silêncio, damos passagem às
borboletas, atentamos para não danificar os brotos das plantas.
E que belo presente recebemos hoje!
Encontramos no final da tarde alguns puri-purins.
São árvores grandes, com galhos espaçados e chegam a 20 m de altura. Seu tronco
e galhos são muito finos e se agitam com o movimento da nuvem. Quando as flores
se abrem completamente, emitem luz e desprendem-se dos galhos, sendo carregadas
pelo vento para diferentes pontos do céu. Este evento acontece em uma noite de
lua crescente a cada 10 intermítis.
Um dos exemplares tinha as flores maduras e de longe vimo-las voar!
Corremos até o puri-purim e – quem diria – nova surpresa! Encontramos enroscado em
um galho, ainda balançante, um sapatinho de fada. Estava roto, provavelmente
por causa da fuga inesperada que a criaturinha empreendeu ao nos ver correndo
em sua direção. As fadas sublimadas não se mostram facilmente. Recolhi o
sapatinho abandonado, pois é algo muitíssimo admirável: elas os confeccionam
com cristais de nuvem e fios de luz (embora para ocasiões especiais prefiram os
fios de eletricidade). O que encontramos foi ainda salpicado com gotinhas de
suco do fruto da noturna, com fins
ornamentais.
<desenhos
técnicos: sapatinho de fada, vestuário das fadas, puri-purim>
<dupla de páginas com foto:
grande onda de água avermelhada>
[Nicodamus
– gritos, gravação muito ruidosa]
Vale!!! Von Nimbus!!!! Vocês estão bem?
Vale????? Agarrem-se aos galhos,
depressa!!!
[Nicodamus]
Vincúlia, 6 de intermítis de 1081
Nesta madrugada a nuvem buscou-nos para
nos colocar a caminho de mais uma maravilha – e nos mostrou sua doçura e sua
violência.
Dormia eu um sono muitíssimo tranquilo,
embalado por um doce sonho em que soava uma melodia em dó maior, quando minhas
orelhas detectaram a presença de um incômodo tátil. Abri os olhos, ainda
embriagados de sono, e mal pude acreditar que já não sonhava: uma minúscula –
quase microscópica – menina ruiva, suspensa por pequenas asinhas cintilantes e
translúcidas estendia seus braços para mim como se me envolvesse em torno de um
lenço invisível. Quis avisar aos outros quando ela conduziu-me por um caminho
entre as árvores, mas não pude, tamanho era meu espanto! Felizmente, apurando
minha visão periférica, soube em seguida que o mesmo se passava com todos.
Chegamos assim às margens de um vasto
rio de águas claras, onde nos esperava uma exuberante canoa, entalhada com
figuras de salamandras e espirais e de cuja proa saltava um grande peixe de
boca aberta. As pequenas aladas, seguidas por todos nós, saltaram para dentro
dela e seus remos começaram a mover-se sozinhos, conduzindo-nos rio abaixo. O
som de suas calmas águas correndo era muito semelhante à melodia com que eu
havia sonhado, apenas mais alto e claro.
Tivemos uma maravilhosa jornada, nos
deliciando com a vista das flores e frutos luminosos das árvores debruçadas
sobre as margens e com a própria água do rio, que exalava um perfume de morango
silvestre maduro. Não resistimos a experimentá-la e o resultado causou grande
surpresa: também nós passamos a brilhar na escuridão!
Mas toda esta doçura estava por acabar…
O ribeirão corria cada vez mais depressa, bem como a melodia que nos
acompanhava e, quando esta alternou-se para o tom menor, aventurávamo-nos em
acidentadas corredeiras! Apesar do receio, sentíamo-nos vivos e eufóricos!
A próxima evolução do comportamento do
rio, no entanto, não foi em nada benevolente: em um instante, nos vimos aos pés
de uma gigantesca onda carmim, que nos tomou em sua espiral, iluminada pela
espuma rendada de suas bordas. Temo ter perdido a calma e o controle sobre meus
atos nesse instante, desconcertado pelo que então se deu: levados pela
torrente, giramos sem cessar, engolindo sua agora ácida e salgada água até
perdermos os sentidos…
[Pausa]
É já de manhã e acabamos de despertar em
uma planície de fina nuvem rosada. Não conheço em absoluto a região onde nos
encontramos. Com efeito, não me lembro nem mesmo de tê-la sobrevoado durante as
expedições que fiz com Tico. Acredito que o sublimatório
esteja passando por mudanças significativas, à medida em que a chuva avança, e
a nuvem reduz seu tamanho. O próprio rio que cá nos trouxe desapareceu por
completo, e a única prova que tenho da veracidade de todas estas palavras é que
vejo a canoa tombada ao pé de mim e tenho os registros gravados pelo binofotomultiscópio*, que, felizmente,
resistiu às intempéries.
O
que não resistiu, para grande infortúnio meu e de toda a história do Reino da
Sublimação, foi a semente do Grão Lufo. Enquanto falo, checo os estragos da
noite: quase toda a bagagem perdida; o pouco que dela restou, danificado; as
roupas que vestimos todas rotas... E ao tocar o bolso da cintura, onde
cuidadosamente guardei a semente, não a encontro. Que triste momento para a
espécie que me foi confiada...
Mas se não há o que havia, há o que há.
Meus companheiros começam a levantar-se… É preciso checar se estão bem e quais
as providências necessárias para o momento. Certamente Vale precisará de
cuidados especiais. Notei que se assustou muito nas corredeiras e chega aqui
não só sem a capinha verde que ganhou de Marvin e à qual se afeiçoara tanto,
mas também sem forças e, provavelmente, sem ânimo.
*embora
o equipamento, de fato, não tenha se danificado durante essa aventura, à parte
a curta fala que antecede este relato, não encontramos os registros de voz que
Nicodamus menciona nesta passagem. Podemos imaginar que o aparelho tenha
sofrido algum tipo de pane momentânea pelo contato com a água e voltado a
funcionar, depois de seco, antes que o explorador recobrasse consciência. É
possível que ele não tenha tido tempo para checar se a aventura nas corredeiras
tinha sido de fato registrada em tempo real. Apenas fotos feitas na ocasião
pelo aparelho foram encontradas. (N.O.)
<sequência de fotos: vista interna da
canoa e tripulantes, vistas das margens>
[Valentina]
Bino, hoje eu quero deixar uma mensagem
pra Clare-Clare, nossa nuvem amada… Quero dizer que ela pode chover na mais
leve tranquilidade de nuvem. Que o nosso amor por ela é todo e permanece para
além da chuva.
Essa noite eu tive muito medo de perder
tudo.
Quando chegamos às corredeiras, o Nico
caiu da canoa das fadas. Reagi muito rápido e pulei atrás dele! Eu estava
desesperada em vê-lo cair e em pensar em seguir sem ele, Bino. Pulei e quase me
afoguei na correnteza, que levava a gente tão depressa. Engoli muita água antes
de conseguir me agarrar em algum lugar. Perdi a chance de me segurar em muitos
galhos pelo caminho - um deles passou raspando pelo meus dedos mas acertou em
cheio a minha capinha verde esmeralda favorita. Para piorar a situação eu não
conseguia ver o Nico em lugar nenhum.
Quem me ajudou foi o Von Nimbus, o único
que não estava assustado. Parecia que ele estava voando nas corredeiras, como
se conhecesse cada movimento da água! Veio pra perto de mim, segurou bem firme
os meus punhos e foi me conduzindo pelas ondulações. Voltei a ouvir a música
vermelha. Senti que a nuvem sabia o que estava fazendo quando deixou correr
toda aquela força luminosa… Fechei os olhos e deixei que ela me levasse. Acho
que você não vai acreditar – eu mesma não tenho certeza – mas acho que dormi,
igualzinho à Tôca, depois do tremilique.
Acordei aqui na planície, que não sei
onde é, mas sei que é a nuvem e pra mim já fica muito bom sabendo disso. E
também sabendo que a sementinha do Grão Lufo continua aqui comigo. E que a
Toquinha está bem: ela está se levantando com aquele sorriso lindo de
passarinho dela! Deve ser porque voltou a tocar música, uma música linda que só
voando!
[Nicodamus, aproximando-se]
Vale, olhe!
[Valentina]
Nico! Elas estão vindo outra vez!
[pausa
longa]
Nico?
[Nicodamus
– sussurrando]
Segure-se no meu braço...
[falando
normalmente]
Tudo se faz escuro agora. Nossos olhos
ainda buscam acostumar-se…
<foto: portas encimadas por
inscrições>
[voz
desconhecida]
Aqui, tudo deve ser o mais escuro
possível, pois quanto mais escuro há a nossa volta, mais luz conseguimos
introduzir dentro de um relâmpago.
Bem-vindos ao gerador de energia
primária de Clareada! É aqui que se produz quase toda a energia necessária para
que as plantas, animais e pessoas comecem a viver. Somos responsáveis também
por produzir todos os raios e trovões da nossa querida nuvem e estamos
envolvidos agora em um de nossos maiores projetos: a chuva final de Clareada.
Venham! Eu sou Celina e vou lhes mostrar a maravilha que é criar um relâmpago!
[pausa]
Não tenham medo, sigam os miosótis...
[Nicodamus]
Eis que estávamos na planície, elevados
por uma sublime melodia, quando reencontramos nossas amigas aladas. Vinham da
encosta de nuvem vermelha a nossa frente, agora em maior número e ainda mais
bem dispostas. Voavam em torno de nós, tirando medidas e estendendo fios de
eletricidade anil na cosedura de trajes especiais, todos bordados com padrões
semelhantes aos da canoa que nos levara até ali. Vale ganhou até mesmo uma nova
capinha, parecida com a que acabava de perder, mas na cor azul.
Em seguida, como haviam feito na
madrugada, os pequenos seres nos envolveram em seus lenços ocultos e
levaram-nos flutuando em direção à encosta. Mas, então, algo assustador
acontecia: à medida em que nos movíamos, íamos diminuindo de tamanho, até
ficarmos tão diminutos quanto as fadas que nos conduziam!
Chegamos assim à frente de pequenas
portas incrustadas na nuvem vermelha que à distância eram-nos invisíveis. Cada
qual tinha uma inscrição diferente, escrita em uma antiga língua do Chão, da
qual eu pouco me recordava, embora a tenha estudado em minha adolescência. Ali,
o entra e sai de criaturinhas ruivas era constante: entravam por uma porta
sempre segurando uma bolha de eletricidade vermelha e voltavam de mãos vazias.
Olhávamos para tudo isso do deque onde
havíamos pousado com as fadas, diante de uma porta dupla com as inscrições que
eu me esforçava por compreender. Percebi, afinal que diziam algo sobre
geradores de energia. Então a porta se abriu. De lá de dentro vimos surgir uma
pequena salamandra muito vermelha, acompanhada por outras duas salamandras tão
vermelhas quanto a primeira, mas ainda menores. A maior delas nos encarou por
alguns instantes, sorriu e nos fez sinal para acompanhá-la porta adentro.
Tão logo o último de nós pôs os pés no
interior do lugar, a porta se fechou às nossas costas, deixando-nos na
companhia de nada além de escuridão. A voz de Celina, a salamandra maior, foi o
que nos resgatou do desespero ao esclarecer onde estávamos e nos instruir sobre
como caminhar, fazendo-nos ver que uma trilha de pequenos miosótis
luminescentes mostrava um caminho a seguir.
Já não sei quando retorno com novo
relato… É preciso muita atenção para desvendar este negro espaço…
[Valentina]
Hoje talvez seja Undúnia, 11 de intermítis
de 1081, e Clareada tá parecendo o Cumulus
mais Nimbus do céu agora! A gente já
tá andando há um tempão! Pelos cálculos do Nico, este é o quinto dia de
caminhada dentro do gerador. Além de muito escuro, esse lugar deve ser muito,
muito, muito gigantesco!
[Celina]
Sim, de fato, é imenso! Normalmente
trabalhamos em um espaço mais reduzido, pois até agora apenas tínhamos feito
pequenas participações em tempestades vizinhas. Não tínhamos nunca mais do que
três ou quatro Clarões, que são as grandes salas onde se fazem os relâmpagos.
Foi preciso ampliar muito a rede para que houvessem centenas deles na chuva
final. Também precisamos de muito espaço para armazenar matéria-prima. Toda luz que nutre um raio provém da energia dispensada
por aquilo que se desfaz nos preparativos para o desaparecimento da nuvem –
casas, árvores, objetos pessoais que não podem ser carregados e uma infinidade
de coisas que não podem ser transportadas para outras nuvens. Essa energia não
deve ser desperdiçada, pois é necessária ao surgimento de novas nuvens, com
novas vidas. As fadas sublimadas a coletam e convertem em luz e som, que serão
matéria-prima para os raios. Ao serem disparados, eles emanam energia para
outras regiões do céu que precisam utilizá-la na criação de elementos novos.
Mas devemos nos calar agora. Estamos
chegando ao coração do gerador. O
silêncio aqui é tão importante quanto a escuridão.
<desenho esquemático dos caminhos do
gerador, retirado do caderno de campo de Nicodamus>
[Celina,
depois de um longo período de silêncio]
Devemos ir agora, pois já fizemos
barulho demais.
[Valentina]
Eu sou um trovão!!! Todos somos! Um
trovão e todos os trovões!
E, como trovão, acho que preciso ser
silenciosa como um relâmpago agora…
Toma Nico, pode falar… Eu só precisava
dizer isso...
<foto: centro do gerador>
[Nicodamus
– sussurrando]
Após muito tempo caminhando em silêncio
por porções de densa e escura nuvem, Celina, nossa salamandra anfitriã, começou
a explicar-nos a estrutura que percorremos. Como já desconfiávamos ao descrever
um caminho impossível de ser memorizado, estamos andando por um extenso
labirinto formado pela rede de miosótis que emanam uma baixa luz azulada. Esses
caminhos levam a imensas salas, chamadas Clarões, onde se disparam os
relâmpagos. No centro do labirinto, de onde acabamos de sair, fica a origem da
criação dessa luminosa maravilha!
É de uma grande esfera, tecida com as
mesmas flores e galhinhos luminosos em que pisamos, que partem todos os
caminhos para os Clarões. Dentro dela, trabalham duas moças idênticas, sentadas
uma de costas para a outra em cadeiras invisíveis de alto espaldar. Chamam-se
Serena e Sonora e tecem com agulha o labirinto. Têm a pele claríssima e um
bocado cintilante; os olhos límpidos e cinzentos, atentos ao bordado,
ornamentados por longos cílios; boca pequena e – quase nada – rosada. Notei,
apesar do longo vestido de saia afofada que vestem, que são esguias; as longas
e hábeis mãos movimentando-se com graça na confecção do tecido. De quando em
quando, chegam os galhinhos à boca e sopram dentro deles a essência do raio
que, mais tarde, esses ramos irão produzir. Serena insufla-os da calma que deve
antecipar seu disparo, enquanto Sonora lhes envia a qualidade do som que devem
emitir ao serem disparados. Só então levam-nos às agulhas.
Enquanto as contemplava, embevecido,
tive, algumas vezes, a impressão de estar vendo ali uma única pessoa – o que me
causou uma espécie de instabilidade mental. Como estivéssemos hipnotizados pela
beleza daquela visão, foi Celina quem atentou para o fato de que já nos demorávamos
e nossa presença poderia perturbar. Retiramo-nos e estamos agora percorrendo
uma das ramificações, rumo a um Clarão, onde aprenderemos como terá
continuidade a criação de um relâmpago.
[Valentina]
Ainda estamos andando pelo galhinho que
a Tôca escolheu lá no centro do labirinto. A Celina disse que na ponta dele
vamos encontrar um fruto escuro, que é o raio.
Essa expedição no gerador está me
lembrando uma coisa que minha mãe sempre fala e que me deixa muito brava. Ela
diz que eu sou igualzinha à bisa: espírito de trovão, cabeça de criança e
coração de vovó. Mas, depois de ver a Serena e a Sonora, acho que não vou mais
brigar quando ela disser isso, porque entendi que ela tem razão e que se eu
conseguir entender como essas coisas funcionam juntas, elas podem ser todas
muito boas.
Então eu estou aqui, tentando equilibrar
tudo isso em cima desse galhinho, um pé depois do outro. Sei que é um caminho
longo até o Clarão, mas não tenho pressa, porque também sei que vamos chegar.
[Pausa]
Talvez eu também esteja com um pouco de
medo de estar tão perto de um relâmpago...
[Voz
desconhecida]
Mais nova gente vendo futura grande luz!
Dia claro, amigos! Conhecem a preciosidade? Dentro no fora do Clarão faz
escuro. Dentro aqui, não. Dentro aqui na seringa há luz, luz branca – mais que
nuvem e passarinho. Começou um raio: fruto negro deeeeeste tamanho! Clarão
todinho ocupado pelo fruto! Dia aqui, dia ali, Aladas Vermelhas colhem luz,
guardam – muito amor – na agulha negra. Eu tomo a luz – muito cuidado – pico o
raio: diminui! Menor hoje, menor amanhã, menor depois de amanhã. Viu? Deste
tamaninho. Este aqui, raio muito avançado. Dentro aqui, luz de derramar numa
cidade inteira! Pouco tempo, raio retoma tamanho original. Diferente: virado em
luz!
<retrato do relamparino>
[Nicodamus,
sussurrando]
Vale, o gravador!
[Nicodamus]
Acabamos de sair de um Clarão onde
trabalha Claus, um dos mais antigos relamparinos
da nuvem – seu pai, seu avô e seu bisavô eram criadores de raios como ele, e
com eles aprendeu o ofício. Quando entramos na imensa sala, conduzidos pela
rasteira vegetação, o homenzinho de baixa estatura estava no centro dela,
cuidando de um minúsculo fruto quase negro que pendia da ponta do galho mais
fino. Amparava-o delicadamente entre três dedos, enquanto, usando uma seringa
negra, injetava alguma substância dentro dele. Ao notar nossa presença, sorriu
e recebeu-nos, explicando como se faz um relâmpago. Seu amor pela criação de
tal elemento é tão grande que, quando terminou a explanação, seu rosto estava
iluminado de alegria! Rapidamente, apontou para si um coletor de luz, que havia
tirado do bolso, e armazenou-a nele, dizendo: "Nunca sabe um relamparino quando luz é urgente…"
Agradecemos a atenção que nos deu, e
deixamos que trabalhasse em silêncio. Encaminhamo-nos agora para outra sala.
[pausa
longa]
Que maravilhosa surpresa acabo de ter!
Desde que entramos no labirinto, eu vinha sentindo que trazia algo no peito…
Acabo de checar, enquanto caminhamos até a próxima sala, e descobri que se
trata justamente do que eu imaginava: de alguma maneira, a semente do Grão Lufo
havia ido parar no bolso do casaco que fica na altura do coração. Conservei-a
lá mesmo.
[pausa]
Estamos em outro Clarão. Aqui não há
ninguém, nada se vê, nada se ouve. Mas ao contrário do medo e desorientação que
senti na primeira vez em que nos vimos em completa escuridão, agora sinto-me em
paz.
[pausa]
Luz!!! É tudo luz agora! Uma maravilhosa
claridade de centro branco e contorno anil recorta a sala e por todo o
perímetro reverbera o acorde poderoso de um lá menor!
E mais isto? Para onde vamos? A nuvem
tornou-se água sob nossos pés e começa a nos carregar... Qual será o nosso
destino???
[Valentina
– gravação ruidosa, possivelmente com som de água corrente ao fundo]
Eu vou me afogar! Eu vou me afogar! Eu
vou me afogaaaaarr!!!!
<foto: do lado de fora do gerador>
[Nicodamus]
Procure se acalmar, Vale…Veja que
estupenda é a aparência da água pela qual nos deixamos levar...
[Valentina,
mais calma]
Nossa, Nico! Que beleza!
E aqueles barcos? Iguais a uns que
apareceram num sonho meu, dia desses…
Olha, olha! Minha capa nova! Está
brilhando também!
[Von
Nimbus, exclamação ao fundo da gravação]
Escorrega luz!!!
[Nicodamus]
Percorremos docemente a planície agora.
Quando o relâmpago eclodiu no clarão, um novo rio, feito de água e reluzentes
pedras de cor anil, nasceu sob nossos pés, levando-nos para fora do gerador.
Como personagens de uma imensa caixa de música, navegamos a singela melodia
produzida pelo tilintar das pedras, embarcados em nossos próprios corpos.
Comprazemo-nos, divertidos, deslizando
por corredeiras suaves. Von Nimbus diverte-se tanto que não pode conter um sem
número de deliciosas exclamações, como "Feliz nem passarinho de pena azul
é mais" e tantas outras de natureza semelhante. Com efeito, a sensação
toda é tão aprazível que a própria Valentina logrou acalmar-se e desfruta da
experiência afinal. As pedras que deslizam umas sobre as outras,
transportando-nos, começam agora a diminuir de tamanho.
[Von
Nimbus, ao fundo]
Sorte, tanta sorte brincando na barriga
minha!
<foto: encosta com
embarcações>
[Nicodamus]
Avisto a encosta vermelha onde
encontramos Celina pela primeira vez. Incontáveis novos rios escorrem em sua
direção, repletos de curiosas embarcações, que levam os clareados até as portas
do gerador. Ali, certamente a salamandra os espera, afim de conduzi-los pelo
labirinto escuro.
[Valentina,
interrompendo o irmão]
Nico, você acha que...
[Nicodamus]
De fato...
[os
dois falam ao mesmo tempo e riem juntos]
Sim! Sim! É isso mesmo!
[Nicodamus]
Essa visão das pequenas portas nos
devolve uma referência de proporção e compreendemos – confesso que um tanto
aliviados – que não foram as pedras da torrente que tiveram seu tamanho
reduzido, mas nós é que temos o nosso reestabelecido!
À medida em que vamos nos aproximando da
encosta, a névoa azul que sobe do rio, à luz dos cristais polidos pela água,
mistura-se à cor da planície vermelha, produzindo arroxeada neblina. Tudo
parece estar em mutação neste instante. O próprio rio vem, a pouco e pouco,
ganhando pedras de um outro azul, mais ciano, que vêm tingi-lo da luminosa cor
que anuncia a noite ou o nascer de um novo dia… A luminosidade agora é tanta
que não posso manter os olhos completamente abertos. Também a melodia parece se
renovar, em uma peculiar combinação de sol e lá bemol. Que doces aventuras
habitarão o porvir?
<foto: névoa com
silhuetas>
[Valentina, depois
de uma pausa]
Tôca!!!
É ela, Nico!
[Nicodamus]
Aquela imensa mancha vindo na nossa
direção?
[Valentina]
Só pode ser!
[Von Nimbus]
Heitor também! Vamos ser cor!
<foto: a
nuvem brilha com os clarões>
[Nicodamus
– música alta e ruído de vento ao fundo]
Da roxa névoa, vimos surgir ruflando as
imensas asas de Heitor e Tôca, que de lá nos carregaram, certamente temerosos
pela instabilidade daquela região. Trouxeram-nos a uma distância que nos
permite observar Clareada de fora. Pelo que se pode ver, os relamparinos trabalham com afinco, pois
o negro Cumulus brilha, emanando
constantemente de seu interior clarões azulados, seguidos de estrondos que
arrebentam a nuvem em novos rios. Esses cursos de água começam mesmo a
extravasar o tamanho da própria nuvem e derramam-se céu abaixo. Felizmente, os
clareados que são carregados por eles para fora do gerador estão sendo
resgatados a tempo pelos grous-íris, que vêm se reunindo ao nosso
redor.
Voamos alto e daqui podemos perceber
claramente que o sublimatório de
nossa estimada nuvem está já bastante reduzido. Imagino, ainda, que o rio de
pedras reluzentes deve se estender por ele todo, pois uma poderosa névoa azul
liga os dois extremos de Clareada, como se fosse uma peça encaixada em seus
limites! Não restam dúvidas de que essas preciosas corredeiras tenham a função
de trazer os habitantes da nuvem ao encontro das últimas maravilhas.
Ainda há pouco, comentei com Valentina
sobre essa possibilidade, mas ela parece não me escutar… A música que ouvíamos
às margens do rio agora está tão alta! Sinto vibrar na sua frequência cada
milímetro do meu corpo. Começo a ter dificuldades para ouvir meus próprios
pensamentos! Já não posso prosseguir com este registro...
[Grande
estrondo. A melodia cessa. Ruído de vento.]
<foto:
voo no céu (imagem borrada)>
[Nicodamus]
Vale! Segure-se firme!!!
[Valentina]
Uhuuuuu!!!
[pausa]
Nossa! Como a nuvem está menor! E quanta
coisa já desapareceu… E… Von Nimbus! E os outros bichinhos? Como vão fazer?
Eles não estão chovendo também, estão?
[Von
Nimbus]
Chove, não chove. Chove gente, não
chove. Chove planta, não chove… Muda de nuvem. Chuva é assim: junta nuvem muita
nuvem – nova nuvem leva longe quem não chove não voa. Velha nuvem chove.
<foto(s): vista
da nuvem de longe, lugares se liquefazendo>
[Nicodamus]
Um último e sonoro trovão coincidiu com
o silenciar da música alta, como se a um só tempo encerrasse o ciclo das enxurradas,
e desse início a uma nova maravilha. Bruscamente, a atitude dos pássaros mudou.
Se antes, calmamente acomodados em seus dorsos, observávamos Clareada em voo
quase estático, agora, ao som do trovão, os grous arrancaram em velocidade ao
redor da nuvem. Rasgamos, neste instante, o plúmbeo céu e constatamos que quase
tudo aquilo que conhecemos em seu sublimatório desapareceu ou está
desaparecendo.
A grande encosta vermelha agora não
passa de um aglomerado de pequenos nancos,
e a densa floresta, que escorre céu abaixo, apresenta-se-nos translúcida, como
as projeções de um filme da memória. Despeço-me das… dos... [pausa] É inútil! Não posso me lembrar
dos nomes das plantas que passei os últimos anos estudando! Tudo foi registrado
pelo binofotomultiscópio, mas não se
tornou menos frágil. Tudo isso não existia senão no tempo que passou, e o
presente nada conhece a seu respeito. Não restam senão apontamentos, histórias
contadas por alguém que eu fui.
Mas não há saudade no que digo. Pelo
contrário: encontro grande satisfação por ter vivido o que vivi e por estar
vivendo o que vivo!
[Valentina]
Olha! O Solar da Névoa!
[Von
Nimbus]
A névoa! Doce breve bruma.
<foto: revoada vista de
longe>
[Nicodamus]
Acabamos de descrever uma volta completa
em torno da nuvem.
Uma massa disforme desprende-se dela e
vem coreografando cores e densidades que mudam a cada instante, enquanto cresce
em nossa direção, como um imenso ser que estica delicadamente seus desajeitados
braços de madrepérola. São os outros pássaros que, em bando, aproximam-se
trazendo os moradores da nuvem.
[Von
Nimbus – Ruído de vento]
Viramos em cor! Voar agora é sempre!
[Valentina]
É a coisa mais maravilhosa que já vivi!
[Nicodamus]
Juntamo-nos à revoada! A julgar pela
multidão em que estamos mergulhados, acredito que todos os pássaros e clareados
já tenham deixado a nuvem e estejam conosco agora. Em meio a tamanha
complexidade de movimentos, é incrível a precisão de voo dos grous!
Enquanto descrevem as acrobacias
sincronizadas, uma quente ventania nos envolve, fazendo formigar nossos corpos.
<fotos: revoada vista
de dentro>
[Nicodamus
– gravação ruidosa]
Vale? Vale??!
Onde estará?
Súbito, os grous todos cortaram a nuvem
e, sobrevoando os rios, movimentaram-se de maneira a nos derrubar de suas
costas. Caímos todos de volta nas correntezas. Acredito que eu, Vale e Von
Nimbus tenhamos caído em rios separados pois não os vejo em parte alguma.
Mas encontro grata surpresa: é Tico quem
vai escorregando pelo rio bem ao alcance dos meus pés! Poderei afinal despedir-me
deste bom amigo e companheiro de expedições!
Tico!
<foto(s): clareados
escorregando pelos rios>
[Nicodamus]
O rio em que me encontro vai se tornando
mais caudaloso, carregando-nos segundo sua vontade na correnteza. Fez passar rapidamente por mim Von Nimbus e
levou para longe os Sanhaços…
O volume de água aumenta sensível e
rapidamente. Meus pés já não podem alcançar o fundo. Perco as esperanças de
encontrar Vale…
Experimento uma sensação de queda…Que se
torna cada vez mais evidente!
[Pausa]
De fato, estou caindo! Vejo a nuvem
afastar-se rapidamente! Já não resta quase nada dessa antiga boa morada…
Também os outros habitantes de Clareada
estão caindo ao meu redor! Parece-me que avisto Von Nimbus a alguns metros de
distância…Onde estará Valentina?
<foto(s): clareados
flutuando no céu em torno da pequena nuvem>
[Pausa
– nova melodia começa ao fundo]
A sensação de queda começa a
desaparecer! Flutuo! E não sou o único: o mesmo acontece a todos os nuvâneos! É
como se pudéssemos nadar no vento! Rodopios! Hahahah! E piruetas! Oooh!
Hahahah!
Aaaaahh! O negro oceano sobre o qual
pairamos! Vagas que dançam, luminosas cristas cortantes. As estrelas se acendem
na água e lançam-se para fora dela em cardumes voadores. Os grous também estão
aí, dançando calmamente com os peixes, sobre a invisível linha da água.
Uma sensação peculiar dedilha-me o
peito. Não é preciso checar: trago ainda comigo a semente do Grão Lufo.
[Pausa
– a melodia ao fundo torna-se mais clara e complexa, como se fosse executada
por uma orquestra]
<fotos: mar, céu,
horizonte>
Com voz branda, Clareada canta sua
última melodia. O vento sopra com doçura, dispersando a linha do horizonte e
esparzindo as nuvens vizinhas que contribuíram para a tempestade. Imenso tecido
laranja estende-se ao redor do mundo. Sob seu terno calor, dançamos os desenhos
aprendidos das aves. Gotículas luminosas como o sol nascente nos circundam –
voamos um banho de chuva! Sinto-me atravessado por elas. Sinto-me como cada uma
delas. O toque das mãos de cada clareado alcança meus dedos. O toque de cada
clareado é o meu toque. Vale… Estamos bem! Que generoso ser nos tornamos!
Sublime condensação! Bem-vindo novo!
[Longo
tempo de gravação em que só se ouve música, num crescendo. Um intenso movimento
final encerra a sequência com um sonoro acorde]
<imagem da semente do
grão lufo brotando no peito de Nico>
[Nicodamus]
Estamos todos em queda livre agora. A
nuvem desapareceu por completo sobre nossas cabeças e todos caem lentamente. De
fato, os nuvâneos encontram até mesmo
tempo para cantar a Canção do Desanúvio e se despedir uns dos outros.
Entretanto, minha velocidade de queda
está aumentando vertiginosamente. Por algum motivo misterioso, minha aceleração
é muito maior que a dos outros. Se Tôca Pitoca não me encontrar em poucos
segundos, temo não poder concluir os relatos da chuva, pois receio que não
resistirei ao choque com a água!
<imagens fotografadas a
esmo pelo binofotomultiscópio em queda livre, depois de Nicodamus tê-lo
soltado de sua cabeça – o Grão Lufo brota no peito de Vale (ao longe) e Von
Nimbus, clareados dançam, se despedem, caem, são resgatados, o sol vai surgindo
e revelando novamente através do seu reflexo a linha do horizonte, Vale se
despede de Von Nimbus, Tôca resgata Vale>