[Valentina]
Quarta-feira, 19 de outubro
Não sei se vou conseguir falar direito, Bino. Estou muito preocupada, as imagens na minha cabeça não param de girar... O Nico sumiu. Acho que trouxe um pedaço de Clareada nos meus olhos, eles não param de chover...
Eu lembro de estar com meu irmão sobre a Tôca. A música que os cristais tocavam estava tão, mas tão alta, que eu não conseguia mais entender o que meu irmão falava. Eu não entendia mais nada na verdade, era como se tudo estivesse dissolvendo. Pouco depois, atentei para a superfície da nuvem e percebi que, de fato, os cristais estavam se desfazendo. As pedrinhas transformaram-se em muita água, muita água mesmo… mas muita… mesmo… rios nasciam abaixo de nós! O Nico estava tão feliz…
[Pausa – retoma com a voz embargada]
Pois bem, preciso continuar falando do que aconteceu… Preciso me lembrar de cada detalhe, porque em algum ponto de tudo isso tem que ter uma pista do que aconteceu com o Nico...
Além de muita água, os rios traziam os moradores de Clareada. Todos estavam muito felizes, lembro de ter ouvido coisas do tipo "Feliz nem passarinho de pena azul é mais!" – esses clareados sabem mesmo achar graça das coisas em qualquer circunstância.
Clareada diminuía de tamanho rapidamente, os relâmpagos de Celina não paravam de relampear, nem a água de aguar. Estávamos ainda sobre a Tôca, quando vimos uma revoada de pássaros iguais a ela e ao Heitor surgirem. Quer dizer, não tão iguais, cada um tinha sua combinação própria de cores e um porte mais rígido ou relaxado. Mas todos eram gigantescos, velozes e ligeiramente luminosos. Eles faziam acrobacias sincronizadas pelo céu, as cores se combinavam de um jeito tão lindo! Estávamos maravilhados com as aves até percebermos que todas elas estavam derrubando seus passageiros próximos aos rios para poderem voar com mais liberdade. Tôca e Heitor não fizeram diferente e quando dei por mim, estava caída no colo de uma senhora sorridente que usava um chapéu cheio de galhos de puri-purim.
<desenho técnico feito por Valentina: chapéu de puri-purim>
O que aconteceu depois disso foi muito rápido. Eu havia caído em um rio que me jogou para fora da nuvem, como essa senhora e todos os habitantes de Clareada. Mas nenhum de nós sentia medo, pelo contrário, estávamos todos inundados em tranquilidade. Era como se nossos corpos estivessem muito leves, chovendo e misturando-se uns aos outros, formando um único ser vivo e molhado. Ao olhar para baixo eu conseguia ver o mar, olhando para cima, nossa amada nuvem já estava praticamente desaparecida.
Durante um tempo que não consigo dizer quanto foi, estivemos dançando todos juntos, de um jeito muito parecido com o que tínhamos feito quando estávamos voando com os pássaros. Depois, comecei a me sentir mais pesada e percebi que caía com um pouco mais de velocidade. Encontrei Von Nimbus na queda e nos despedimos com promessas de vento breve. Os pássaros iniciaram o resgate aos habitantes de Clareada, que, aos poucos, foram se espalhando pelo céu, em direção às suas novas casas. A Toquinha me encontrou muito rápido. Mas ainda não encontramos o Nico, só esse trambolho do chapéu dele… Ai, desculpe por falar assim de você, Bino, ainda estou sem jeito com essa história toda...
Agora estou de volta à casa dos meus pais. Estou tentando descobrir como mexer nos registros antigos pra ver se tem alguma coisa que me ajude a achar o Nico. Ele só me deixava gravar, nunca ouvir o que já tinha registrado – ele tinha muito medo que eu apagasse tudo sem querer. Por enquanto, só consegui acessar o último registro que ele fez, que diz que... Ai, não consigo repetir, vou chover de novo...
Clareada tem um ditado popular que diz "Tem raio que me engana. Em vez de água, cai banana." Ou seja, nem sempre as coisas são do jeito que parecem ser. Por mais que a última fala que ele registrou seja desanimadora, algo me diz que meu irmão está bem.
[Valentina]
Terça-feira, 25 de outubro
Finalmente consegui mexer nesse trambolho que é o chapéu do Nicodamus! Para liberar todos os registros, eu precisava dar um tapinha de leve na aba e dizer uma frase. Descobri isso depois que eu arremessei o troço no chão e soltei algumas palavrinhas de fúria. Calhou de a aba bater no chão e "raio na testa" ser a senha. Preciso ter uma conversa séria com o Nico quando a gente se encontrar...
Retirei algumas informações do trambolho sobre a maravilha laranja e tem uma coisa que me deixa com neblina na retina: ele menciona o Von Nimbus duas vezes depois que começou a última maravilha. Eu também vi o Von Nimbus no céu, então acho que devemos ter caído mesmo muito perto um do outro. Como é que então eu não vi meu irmão depois da revoada? Ainda vou decifrar o porquê disso e da queda dele ter sido mais rápida que a de todos nós.
Mas fiquei feliz ouvindo os relatos, porque percebi que o Nico e eu nos sentimos de um jeito muito parecido nessa hora! É verdade que a sensação era de que ele estava muito pertinho de mim, mesmo que fora do alcance dos olhos...
O céu estava realmente muito laranja – um laranja morninho, como se existisse para ajudar a secar toda a chuva. Enquanto caíamos, os pássaros e as pessoas eram pequenas gotas de tinta voando no céu. Clareada cantava uma melodia muito suave em ré maior (foi esse o registro do trambolho). Eu estava leve, leve, voando como a Tôca. Eu caía a toda velocidade sem medo. A semente do Grão Lufo, que eu tinha guardado com muito cuidado, começou a germinar (vou até plantar ela aqui, agora). Comecei a ver tudo em volta com uma clareza cristalina! Percebi que todos os clareados estavam com uma expressão serena no rosto, mesmo os que estavam tristes momentos antes da queda. Eu também estava calma. Senti que era dona do tempo e que aquele instante podia durar o quanto eu quisesse. Uma sensação, de fim e começo de ciclo, cheia de esperança me invadiu por completo. Enquanto caíamos, Clareada nos renovava. O nosso último presente da nuvem foi uma enorme carga de inspiração e força de vontade.
Só de escrever isso já me sinto levinha de novo! Será que vou sair voando da cadeira? "O que clareou não apaga", outro ditado de Clareada – eu estou começando a gostar muito dessas frases. Encontrei essa anotada no meu caderno, do lado de uma foto de Nico e Von Nimbus sorridentes. Que saudade...
Estou trabalhando para retirar todos os registros do trambolho. Agora que aprendi a mexer, esse chapéu que me aguarde! Minha mãe disse que ele está apitando e ameaçando explodir por causa da sobrecarga, mas é só uma fumaça preta boba. O importante agora é encontrar o Nico! Valentina Serpentina, valente no nome e em uma nova missão!
[Valentina]
O Dr. Eliseu [cof!] Virga acabou de telefonar… Queria combinar com o Nico o que eles iam fazer com todo material de pesquisa que está com ele. Foi difícil contar que [cof!] meu irmão… está desaparecido. Mas foi bom, porque ele disse que vai me ajudar a [cof, cof!] recuperar as informações que [cof!] ficaram guardadas dentro da sua cabecinha com [cof!] parafusos a mais, [cof!] Bino. Principalmente [cof!] agora [cof!] que a fumaça [cof!] tomou conta da [cof!] casa [cof! Cof!] e parece que algumas coi[cof!]sinhas estão [cof!] parando de [cof!] funcionar… [cof! cof!] Ama [cof!]... Amanhã, vou [cof!] levar tudo [cof!] pra estação… [cof, cof, cof!]
< fotos: a semente de Valentina brotando (várias fotos, cada vez mais próximas)>