prefácio

Clareada

Diário de Expedição dos Irmãos Bernaldo
Nicodamus Bernaldo e Valentina Serpentina Bernaldo

(Organizado por Marcella Tamayo e Marina Faria)




Prefácio


Tenho o costume de pular prefácios. Quando alguém que escreve um livro pede a minha opinião, aconselho que prefira um posfácio, um texto na orelha do livro, a quarta capa – qualquer coisa que não se coloque entre o leitor e a pureza do primeiro contato com a obra. Por isso, se você tem inclinação para pular este texto agora e só voltar depois da leitura do diário, tem meu apoio integral e a certeza (quase absoluta) de que eu faria o mesmo.
Lendo este primeiro parágrafo, um leitor mais exigente pode estar se perguntando – talvez em voz alta, com curiosidade e uma pitada de zombaria –, por que é que então resolvi escrever justamente um prefácio. Respondo que, aqui mesmo, já quase na metade do segundo parágrafo, não venci totalmente a minha resistência natural de fazer isso, mas vou adiante por uma única razão: se o leitor não tem informações anteriores a respeito dos autores deste diário e gostaria de tê-las, antes de conhecer a história, para contextualizar os seus relatos, talvez encontre utilidade no que vai escrito aqui, e isso (quem sabe?) pode ser uma boa desculpa para a existência deste texto nesta posição.
Ainda assim, aviso que o que vou contar é, antes de mais nada, uma experiência pessoal, que nos revelou, a mim e à Marcella, a existência desses expedicionários e nos levou a conhecer pistas esparsas sobre alguns detalhes de suas vidas.
O ponto de início dos acontecimentos se deu em uma ocasião absolutamente trivial, quando eu visitava minha tia-avó no bairro do Tatuapé, em São Paulo. A tia é uma senhora muito pequena, de raras palavras, com mãozinhas hábeis, cabelo de uma alvura luminosa e vivos olhos cristalinos. Por circunstâncias da vida, ela e minha avó compartilham o mesmo pai, mas não nasceram da mesma mãe. Naquele dia, talvez movida por um sentimento de profunda saudade, ela achou de me mostrar uns papéis e livretinhos – guardados que ela tinha da sua mãe, sobre quem quase nada sei. Conhecendo meu interesse por desenho, lembrou-se de chamar a minha atenção para uma pequena brochura toda ilustrada, que me entregou aberta em um dos desenhos de que mais gostava. Folheei com cuidado as páginas frágeis, onde figuravam belas e misteriosas paisagens. Corri à capa para saber de que lugar falava o livro e dei com este título: "Guia de Viagens das Aéreas e Alturas". Longe de esclarecer alguma coisa, essa apresentação só aumentou minha curiosidade. Tratei de procurar ler o que diziam os textos sobre aqueles lugares e deparei-me com os nomes das montanhas mais altas do mundo, correntes de vento, balões, dirigíveis luxuosos e até mesmo nuvens que, segundo suas descrições, abrigavam encantadoras cidades. Aqueles dados me deixaram muito surpresa e passei a procurar, insistentemente, por informações que os esclarecessem. Se aquele era um livro de lugares inventados, onde estava o nome do autor? Não o encontrava em parte alguma! Por outro lado, havia sim um editorial detalhado, com os nomes de uma equipe responsável por escolher o recorte de lugares apresentados e reunir informações sobre eles. Seria possível que fossem lugares reais? Percebendo meu envolvimento com o objeto, minha tia-avó me disse com doçura que ficasse com ele. Agradeci e perguntei a ela o que sabia sobre aqueles lugares, mas, ao invés de responder, ela preferiu descer à cozinha e preparar um chá, que tomamos, enquanto experimentávamos os ovos nevados que ela havia feito mais cedo – e nada consegui que me dissesse sobre o livro que, com o cuidado que se dedica a uma relíquia, eu levava para casa.
Por aqueles dias, um bom amigo em comum, o Samuel Ornelas, iria me apresentar à Marcella Tamayo, minha parceira na organização deste livro. Estudamos na mesma faculdade, mas não nos conhecíamos. Se tínhamos nos visto antes, esses encontros não tinham passado de coincidências despercebidas de trajetos pelos corredores que levavam às salas de aula. Depois de formados, eu e o Samuel passamos a trabalhar no mesmo ateliê coletivo da cidade de São Paulo, o Atelier Piratininga, a convite de um professor querido, o Ernesto Bonato, um dos fundadores do espaço. A Marcella, igualmente sua ex-aluna, veio um dia em visita ao ateliê e, assim que fomos apresentadas, nos entendemos. Conversamos muito, à maneira dos tímidos: mais com olhares do que com palavras. Um dos temas da conversa foram as viagens que tínhamos feito, em épocas diferentes, para um mesmo lugar: as montanhas de São Bento do Sapucaí, na Serra da Mantiqueira, caminho de Minas Gerais. Falando daquelas paisagens, acabei me lembrando do livreto e entendi que ela compartilharia do meu espanto e encantamento diante dele e do mistério que ele representava. Naquela época, eu o carregava sempre comigo e aproveitei a ocasião para mostrá-lo.
Eu estava correta quanto à surpresa que o guia iria causar, mas enganada com relação ao motivo que a provocaria. Folheando a sessão de nuvens, ela estancou. Vi com clareza uma série de conexões se desenhando nos seus olhos. Dei-lhe um pouco de tempo e, em seguida, não podendo mais conter a curiosidade, perguntei o que se passava. Ela me mostrou a página que havia despertado sua atenção. Ali estava a descrição de uma nuvem conhecida pelo nome de Clareada.

<imagem da página do guia, com o texto impresso e imagem>

"N'este exhuberante cumulonimbus, vossos dias serão de innesquecível leveza! A nuvem move-se com vagar ao sabor da Corrente das Bellezas, offerecendo vistas privilegiadas dos mais bellos locais da Terra, a partir de seus mirantes periféricos. Seu interior não é menos estonteante: com uma vegetação riquíssima e pássaros de rara belleza, alli a sublime paisagem promete não decepcionar os amantes da natureza. Se acaso o viajante é mais affeito ao aconchego da vida urbana, encontrará, na scintilante cidade abrigada pela nuvem, charmosos cafés, requintados restaurantes e os mais famosos hotéis da Corrente para vosso confforto. Equipada com um moderno Porto, a nuvem está mais do que preparada para receber as dezenas de balões diários que alli apportam.

Como ascender*
Balão –  o trajeto através da Corrente das Bellezas no cesto de confiáveis balões deita aos olhos as mais deliciosas paisagens e offerece à face ventos revigorantes. Em balão pessoal ou n'os grandes cestos de excursões, a segurança está garantida, bem como uma calorosa recepção nos píeres do Porto principal.
Dirigível – para uma viagem de regallias, o viajante deve preferir o curso em dirigível, que coloca à vossa disposição os melhores restaurantes e accomodações durante o percurso; as bellas paisagens com frequência podem ser avistadas confortavelmente através das vidraças d'os salões principais da grande maioria desses aeróstatos.
Pipa – opção sob medida para os mais aventureiros, o pipa garante maior mobilidade e autonomia de local de pouso quando de vossa chegada ao sublimatório. Requer conhecimentos específicos e habilidades de vôo.

*é conveniente checar a localização d'a nuvem no momento de vossa ascensão e as correntes de vento que accaso se interponham à viagem na occasião.

Onde hospedar-se
Na região central da cidade, localizam-se luxuosos hotéis para o viajante que prefere sentir-se confortável. Entretanto, encontram-se em abundância pitorescas pousadinhas n'a região da Lagoa Lilás, muito propícias a quem procura por dias de tranqüilidade. Aquelles de natureza exploradora também encontram abrigo e estrutura n'os brumings da região da Floresta das Sequorosas (n'a alta temporada recomenda-se levar barraca própria).

O que visitar
Clareada é uma d'as nuvens que mais offerece atracções para todos os gostos, como a Corredeira das Fadas Sublimadas, para aquelles gostam de aventurar-se na natureza; o Bosque das Lebres Prateadas, para typos pacatos; ou o Café Brumado, para quem procura pelo burburinho da cidade. Listaremos n'as páginas que se seguem d'este cathalogo algumas d'essas fabulosas atracções (...)”


 Com a calma e a voz mansa e terna que lhe são tão próprias, a Marcella me contou que certa vez encontrara na caixa de memórias de seu avô, entre as correspondências, uma que chamara sua atenção por trazer uma infinidade de selos muito diferentes de todos quanto estavam nas demais — representavam nuvens, pássaros, correntes de vento, balões e paisagens enevoadas (muito parecidas, aliás, com as do livretinho). Quem a escreveu reportava sua chegada a um local de extrema beleza e onde tudo era tão diferente das paisagens conhecidas por nós que os próprios elementos da natureza pareciam comportar-se de um jeito novo.

<imagem da carta, escrita a máquina>

“Manos,

Os dias aqui são frios e há muito branco, como se poderia esperar. Lá fora, caminhamos sempre por entre as gotas que povoam o ar. Por isso, ficamos quase que o tempo todo dentro da cabana, acompanhados pela luz quente das velas.
Mas não se pinte nos seus sonhos um cenário hostil para a nossa morada. Se o que nos atraiu até aqui foi a proximidade com o azul é porque não sabíamos das maravilhas que nos esperavam!
Um gramado muito verde corre em roda da casa, e, da terra, brotam todos os tipos de legumes, verduras e ervas que se precisam para viver feliz. Há flores brancas, vermelhas, amarelas, cor de laranja, azuis, violetas se abrindo por toda parte. Os que aqui nasceram contam que é a luz do sol que, ao atravessar a fina cortina de água, derrama suas cores distribuindo-as pelos botões da relva. São eles que compõem os grandes arcos coloridos que vocês veem daí.
Há também uma pequena comunidade de gotas cristalinas que corre atrás da casa. São de um tipo diferente das que pairam, que são bastante serenas. Aquelas são mais brincalhonas e gostam de estar muito juntas. Conversam e festejam, fazendo grande barulho. Sua diversão favorita é lançarem-se de uma grande pedra em um salto que não nos parece de grandes alturas, mas que para essas gotinhas há de ser enorme aventura!
Outras companhias constantes são a Orquestra Cururu – que ensaia no quintal – e duas garças cinzentas que sempre nos acompanham no vento da corrente. Cumprimentam toda vez que olho pela janela.
Outros pássaros menores também visitam, certamente para descansar quando têm de percorrer longas distâncias, e o pouso em terra seria demasiado longo. Vemo-los atravessar a alva água sublimada e caçar gélidas minhoquinhas entre os matos ou bebericar o refresco das flores.
Da varanda, vemos também imensas árvores de formatos variados. São plantas muito especiais e diferentes das que se têm em terra: são bailarinas. Dançam o tempo todo, variando as coreografias de acordo com nosso percurso e a velocidade de deslocamento. São belíssimas, leves e criativas.
Durante a noite, à medida em que navegamos, inúmeras estrelinhas adentram a névoa e vemo-las se mostrar e esconder na neblina. Daqui de cima, são um pouco maiores e puxam para o esverdeado.
Só há uma tristeza: é que raramente conseguimos ver a lua. Mas os que conhecem bem os caminhos sabem chegar na beira da névoa mesmo durante a noite e contam que, vista daqui, até a lua nova é grandiosa! Alguns deles nos prometeram ensinar as trilhas assim que estivermos mais familiarizados com o lugar.
A gente daqui gosta de conversar e contam histórias desde o começo dos tempos. Histórias que aprenderam com seus antepassados, e estes com os seus, e estes com os seus, e estes com os seus. Sabem quase tudo sobre a criação do mundo, havendo apenas alguns pontos divergentes sobre o que aconteceu antes da primeira grande tempestade.
Também conhecem bem os lugares por onde viajamos e algumas cidades com as quais a nossa se cruza com certa constância. Dizem que, na nossa atual vizinha mais próxima, há uma grande montanha de onde escorrem rios de luz. Tratam-na por Luminosa. Contam que aqui também já houve montanhas tão grandes quanto essa, mas todas elas já choveram. É um território muito antigo, que tem chovido aos poucos ao longo do tempo, por todos os lugares do mundo e, por isso, hoje não comporta mais do que uma cidadela.
Nossos novos amigos reconhecem todas as cidades vistas do alto, mas demonstram grande curiosidade em conhecer o que sabemos delas da altura de nossas cabeças. Contamos tudo o que sabemos com prazer, pois são cordiais e prestativos, e ansiamos por retribuir-lhes de alguma maneira.
Como podem notar, nossa chegada aqui se deu com tranquilidade. Entretanto, como os ventos são fortes, há dois dias já não se avista o balão que nos trouxe. Espero que os outros passageiros também tenham alcançado em segurança seus destinos.
Mandem notícias do chão quando puderem. Embora extremamente mal-humorados, os urubus estão entre os melhores pássaros para entregar a correspondência na altura em que nos encontramos agora.

Um forte e terno abraço a todos!”

O lugar de onde a carta era remetida chamava-se Clareada. Embora a descrição tivesse despertado sua curiosidade, minha nova amiga, à primeira leitura, assumiu que se tratasse de alguma cidade distante, com características muito próprias, que ela nunca tinha visitado. Mas naquela hora, sentada no sofazinho improvisado do Atelier, lendo o Guia e situando Clareada no contexto de uma nuvem, tudo na carta parecia tomar outro sentido – muito mais conexo, aliás.
Diante do encontro dessas informações e do testemunho de todo um mundo desconhecido que elas pareciam nos dar, compreendemos ter sido colocadas diante de uma situação que não nos permitia permanecer indiferentes. Assumimos ali mesmo o compromisso de rastrear a nuvem, caso ficasse confirmada sua existência. Uma nova coincidência veio colocar imediatamente em curso esse projeto: a Marcella tinha trabalhado recentemente em uma animação que precisou de um cientista da computação para o desenvolvimento de um software específico. Esse profissional, que mais tarde se tornaria peça chave na organização deste livro, trabalhava regularmente em uma estação meteorológica, dedicando-se a projetos como o da Marcella em seu tempo livre, para conseguir algum recurso extra. A nós pareceu que a primeira atitude em direção ao intuito de comprovar a existência de Clareada seria entrar em contato com esse cientista, Mariano Lopez — o Nano, como é conhecido entre o pessoal da animação.
Nano nos recebeu com toda boa vontade, apresentando a estação e seus departamentos e explicando todo o processo de desenvolvimento das previsões climáticas, desde as aferições dos técnicos até a transferências das informações finais para as emissoras, passando detalhadamente pelo que era sua incumbência: a combinação de todos os dados colhidos para alcançar o resultado mais preciso possível. Olhou com respeito e (depois ele confessaria) pouca crença o material que levamos sobre Clareada. Coçou a nuca, com um olhar perdido no teto e sugeriu que procurássemos um outro tipo de estação meteorológica. Explicou que nas estações climáticas, como aquela em que estávamos, estudam-se a fundo as formações em que tínhamos interesse, mas não havia missões ao seu interior. As informações que precisávamos só se podem obter com o tipo de missão que é realizado pelas estações aeronáuticas. O acesso para nós seria muito mais restrito, mas ele nos daria uma carta para conseguirmos ao menos entrar em contato.
A carta foi, de fato, de grande ajuda e fomos bem recebidas na estação, mas não conseguimos ali nenhuma informação adicional. A pessoa encarregada por checar as informações que levamos dizia não haver nenhum registro de áreas habitadas mesmo nas nuvens mais estáveis. Quando perguntamos sobre os balões e aviões que as cruzavam, disse-nos que jamais haviam recebido registros relatando algo desse tipo e que, apesar de perderem contato com muitos balões que entraram em nuvens e desapareceram, a explicação mais plausível seria a falibilidade dos equipamentos rudimentares que alguns desses aeróstatos carregam.
Pensávamos ter perdido aí qualquer pista de Clareada, quando, quase um mês depois da nossa visita à estação climática, o Nano nos telefonou. Não quis adiantar muita coisa pelo telefone, mas pediu que fôssemos à estação o quanto antes.
Nos organizamos e fizemos a visita naquela mesma semana. Quando sentamos ao redor da mesa que ficava em sua sala, notamos que havia ali algo que parecia muito estrangeiro a toda a parafernália tecnológica daquele espaço: uma velha pasta arquivo com envelopes de papel artesanal macio e uma maleta antiquada de metal – notamos que, contraditoriamente, esse metal parecia saído de um filme de ficção científica, porque era extremamente brilhante e muito leve (mais leve até mesmo do que o alumínio). Nano escolheu um entre os envelopes e retirou cuidadosamente seu conteúdo. Eram folhas soltas de um caderno que parecia ter sofrido os efeitos de uma inundação, com folhas onduladas, rasgadas, palavras borradas, marcas de água e mesmo pequenos pontos de bolor. Ele vasculhou com cuidado entre os papéis e nos estendeu um, onde se liam as seguintes anotações, feitas à mão:

<imagem do caderno escrito a mão (recorte)>

"Sexta-feira, 05 de junho
Tenho frequentado diariamente a estação de meteorologia e, enfim, começo a conseguir mais informações sobre Clareada. Com base em análises das informações existentes e de novos dados colhidos nos balões-sonda em operação, consegui traçar com o Sr. Virga a curva de previsão do comportamento da nuvem. Pudemos determinar, embora ainda sem grande precisão de datas, as fases de desenvolvimento da formação que ainda são esperadas e a duração de cada uma delas.

Porém, como as sondas de que dispomos são as mais elementares, não conseguimos senão medir ventos e pressão, permanecendo sem novas imagens fotográficas para analisar mais a fundo e determinar o que se pode esperar encontrar no interior da nuvem. "


Enquanto líamos o primeiro trecho, Nano já tinha encontrado este outro entre os papéis:

<imagem do caderno escrito a mão (recorte)>

“Segunda-feira, 22 de março
Tenciono ainda este ano mudar-me para a nuvem de Clareada. As pesquisas já se estendem agora por quase um ano e reuni grande quantidade de material sobre o lugar, entre pesquisas históricas, topográficas, antropológicas e meteorológicas. Após algumas visitas curtas à nuvem, sinto-me, enfim, preparado para empreender a viagem definitiva. É preciso agora preparar o material para a pesquisa de campo. Prevejo uma infindável lista de materiais bastante específicos, considerando o clima e as peculiaridades do lugar.”

Pronto: nossos olhos tão pequenininhos estavam arregalados! A nuvem existia mesmo! E quem nos contava eram aquelas anotações. Quem as tinha feito? Que material era aquele? Nano explicou que, dias antes de nos telefonar, a equipe da estação tinha se reunido para reorganizar os arquivos, na tentativa de ganhar espaço para os documentos mais recentes – embora, atualmente, quase tudo seja informatizado, eles seguem a norma de imprimir e arquivar alguns tipos de informação. Com as salas abarrotadas de papéis, os arquivos mais antigos precisavam ser descartados, e os funcionários estavam fazendo uma seleção desses documentos. Nano ficou com as gavetas do fundo da sala, as que estavam ali intocadas há mais tempo. Dentro de algumas gavetas emperradas encontrou o material que estava sobre a mesa e que chamou a sua atenção porque não seguia nenhuma norma de catalogação conhecida. Contou que junto com aquela, tinha encontrado muitas outras pastas-arquivo com material parecido.
A caixa também não era a única: havia outras em gavetas que ele tinha precisado arrombar, porque estavam trancadas a chave. Tinha certeza de que estavam relacionadas com as pastas, porque as etiquetas coladas nas gavetas eram iguais. Soltou as travas da caixa para nos mostrar o que ela guardava: instrumentos estranhos, cadernos, pastas-herbário, vidrinhos (muito bem embalados) com plantinhas ressecadas dentro. “Tem uma com umas roupas esquisitas e outras com livros – dá para fazer uma biblioteca…” disse o Nano, que tinha mostrado o material para o supervisor e recebido a seguinte resposta: “Se tem mais de dez anos, é lixo. Essa é a regra.”
 As pessoas da estação não faziam ideia de onde aquilo tudo tinha vindo e não demonstravam nenhum interesse pelo assunto. Riam da esquisitice daquelas coisas e falavam uma dessas expressões que vão tomando corpo em um determinado lugar, porque são baseadas em acontecimentos muito próprios dali, e que com o passar do tempo se descolam da origem. A da estação era essa: “só pode ser coisa do Eliseu!” E, apesar de ninguém saber quem era o Eliseu, todo mundo sabia muito bem o que a expressão queria dizer: que alguma coisa era inútil e descabida. No caso desse achado, eles estavam mais do que certos.
O Nano tinha lido muitas daquelas anotações e, no dia que nos chamou, tinha encontrado aquelas duas, que fizeram com que ele se lembrasse da nossa conversa (e se arrependesse de não ter levado a sério nossas perguntas). Tinha certeza de que falavam do mesmo lugar que estávamos procurando e que, se queríamos mesmo seguir com as investigações, aquele material era um bom ponto de partida. Ele mesmo não podia seguir com a leitura ali na estação, porque estava sendo pressionado pelos superiores para voltar ao trabalho de descarte. Se quiséssemos, as caixas e pastas eram nossas, era só sair dali com elas naquele mesmo dia! Foi o que fizemos.
Mais tarde, em casa, reunindo o material, descobrimos ainda muitas anotações que pareciam ser parte daquele mesmo diário despedaçado e, dentro das caixas, fotos, negativos fotográficos e rolos de fita magnética para gravação de áudio. Esse dia de descoberta e triagem de material foi o primeiro de muitos nos anos de pesquisa que se seguiram.
Começamos pela leitura do diário, tentando reunir, cronologicamente, as páginas soltas, decifrar as palavras borradas e adivinhar o conteúdo de relatos que provavelmente se perderam. Logo no início, ficou claro que líamos o diário de um explorador, que relatava sua expedição à nuvem de Clareada. Toda dúvida sobre a existência da nuvem como região habitada desapareceu. Mais adiante na leitura, encontramos outras duas respostas, uma sobre como aquele material tinha ido parar na estação e outra para uma pergunta que nem tínhamos feito: quem é esse tal Eliseu, que vive na boca dos funcionários da estação quando o intuito é desmerecer alguma coisa?
Não é de estranhar que não tenhamos feito a pergunta, que parecia irrelevante dentro da pesquisa. Mas descobrimos, afinal, que o personagem fictício da expressão não era nem fictício nem irrelevante: tinha nome, sobrenome, profissão e um papel fundamental nas pesquisas do nosso explorador. Eliseu Virga foi funcionário da estação, já aposentado, mas ainda na ativa, quando o autor do diário procurou o apoio da estação. Foi ele quem acreditou na sua busca e acolheu suas investigações. Mais tarde, acompanhou à distância a expedição e recebeu o material colhido na nuvem, que era enviado para ele periodicamente. Infelizmente, não conseguimos encontrar mais informações sobre Virga, e não foi possível esclarecer por que motivos ele teria abandonado o material na estação.
Quanto ao diário, não foi escrito por um, mas por dois exploradores muito jovens, que eram irmãos: Nicodamus Bernaldo e Valentina Serpentina Bernaldo. Sobre eles, além de seus relatos, tudo o que pudemos encontrar foi uma folha de caderno em que foram anotados pequenos resumos de suas trajetórias:

<imagem da folha com os trechos escritos a mão>

“Nicodamus Bernaldo
Precocemente formado em biologia, física, matemática, história e idiomas com ênfase em línguas mortas, Bernaldo é explorador desde a mais tenra idade quando, mamadeira numa mão e argolinha na outra, estudava a tensão superficial da mistura da bolha de sabão.
Desenvolve projetos e protótipos para meios de transporte nas condições mais adversas; estuda o comportamento humano, a fauna e a flora; visita os mais diversos lugares do planeta afim de desenvolver pesquisas específicas em diferentes meios, tendo já visitado, entre outros, o Reino do Amanhecer e o Mundo Suspenso das Copas das Árvores.
As últimas notícias que dele se tem tratam do período em que habitou a nuvem de Clareada, local e objeto de sua mais recente pesquisa. Sabe-se que tinha planos de viajar para outras localidades ainda pouco exploradas pelo homem, como as terras depois da Linha do Horizonte e o espaço atrás das Cortinas das Cachoeiras.

Valentina Serpentina Bernaldo
Estudante ainda em idade escolar, a irmã caçula do explorador procura seguir seus passos – apenas com um espírito mais aventureiro. Acompanhou a expedição de Clareada, trabalhando como sua assistente nas pesquisas de campo e no registro de suas descobertas. Foi ela quem encontrou as informações contidas neste livro, em ocasião de sua busca pelo irmão após seu desaparecimento. Interessa-se por mitologia, astronomia e veterinária. Ainda não escolheu que carreira irá seguir na fase adulta.”

<foto: Nicodamus, Valentina e Virga>

Acreditamos que essas anotações tenham sido feitas por Virga, e que ele pretendia usá-las em uma publicação do diário que já tinha intenção de fazer quando recebeu todo o material. Além de reforçarem a pergunta sobre por que ele teria se afastado desse projeto, as anotações nos colocam outras perguntas: o que aconteceu a Nicodamus Bernaldo e onde estava quando Virga escreveu essas palavras?
Além destes, o diário escrito da expedição é todo cercado de mistérios que parecem permanecer sem respostas. São relatados acontecimentos que os próprios exploradores não conseguem explicar. Mas o último relato que Nicodamus Bernaldo escreveu apontou para o lugar onde deveríamos procurar por mais explicações.
Além do caderno de apontamentos, ele manteve uma série de cadernos de anotações de campo (com desenhos da fauna, flora e vestuário locais) e um diário gravado em um equipamento que ele mesmo tinha inventado. Era um tipo de assemblage dos equipamentos disponíveis na época e outros criados por ele (binóculos, gravador, máquina fotográfica, afinador, coletor de amostras, etc.), que juntos poderiam trazer dinamismo à expedição e que Nicodamus batizou de binofotomultiscópio. Não encontramos o aparelho (desconfiamos que esteja desmembrado, suas partes espalhadas entre as caixas), mas logo entendemos que as fitas magnéticas deviam conter relatos falados em gravações de áudio.
Mais uma vez, contamos com a ajuda de Nano, que nos ajudou a recuperar a maioria das fitas guardadas nas caixas, limpando e identificando as falas mesmo nos momentos mais ruidosos ou em que a fita estava danificada.
Mas se as perguntas feitas pelo explorador sobre sua expedição são em grande parte respondidas pelos acontecimentos narrados nas fitas, as perguntas que nós fizemos continuam sem respostas.
Nicodamus desapareceu no último dia da expedição, depois de cair da nuvem em um ponto do globo terrestre que seria impossível indicar com precisão. Pelo que ouvimos nos últimos relatos gravados e a julgar pelo estado em que se encontra o diário escrito, imaginamos que sua irmã caçula e companheira de expedição, Valentina, tenha encontrado no mar os pertences que ele ainda não tinha enviado para Virga e mantinha consigo momentos antes de desaparecer. Apesar de muito procurar, também não encontramos ainda as pistas para a história de vida da própria Valentina depois da expedição.
Mesmo com tantas questões em aberto, entendemos que o conteúdo do diário é um material tão rico que não poderíamos deixar de compartilhar com o maior número possível de pessoas. Por isso, concentramos nossos esforços em organizar anotações, desenhos, fotografias e gravações de forma que a história, as descobertas e os feitos dos irmãos Nicodamus e Valentina Bernaldo pudessem ser conhecidos, lidos e apreciados.
Em meu nome e no nome da Marcella, convido esse paciente leitor, que acompanhou até aqui este prefácio, a entrar, finalmente, nos encantos dessa expedição.


Marina Faria

<uma dupla só com imagem de nuvem>